003 2003 2014
Resistir ao desmonte
O ritmo frenético das recentes e draconianas medidas governamentais que,
direta ou indiretamente, atingiram os serviços, os servidores públicos e, por
consequência, a considerável parcela da sociedade brasileira deles dependente,
marcou a confecção desta edição da Por Sinal, a primeira da nova direção do
Sindicato, eleita, em maio deste ano, para o biênio 2019/2021. Os comentários críticos, vindos das mais variadas vertentes, à Medida
Provisória (MP) 893/2019, que determina a troca de nome do Conselho de Controle
de Atividades Financeiras (Coaf) e sua vinculação administrativa ao Banco
Central do Brasil, com possibilidade de livres indicações para a composição de
seu Conselho Deliberativo, ao qual caberá a definição das diretrizes
estratégicas do Órgão e o julgamento dos processos administrativos
sancionadores na sua esfera de competência, não poderiam ficar fora desta
edição, que se completa com uma entrevista instigante concedida pelo economista
Eduardo Moreira, além de artigos de Francisco Menezes, pesquisador do Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), e Larissa Ximenes de
Castilho Johnson, professora de Direito da UNINASSAU/Recife e Mestra em Direito
pela UFPE. |
SINDICATO NACIONAL DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO CENTRAL (SINAL)
CONSELHO NACIONAL BIÊNIO 2019/2021
Presidente
Paulo Lino Gonçalves
Belém
Reginaldo Bentes dos Santos
Brasília
Andreia Medeiros Rocha Van Schaijk
Marden Marques Soares
Paulo de Tarso Galarça Calovi
Belo Horizonte
Fabio Faiad Bottini
Curitiba
Carlos Alberto Sabino Lopes
Fortaleza
Joaquim Brasileiro Netto
Porto Alegre
Larri Duarte
Recife
José Milton Bezerra
Rio de Janeiro
Sergio da Luz Belsito
José Vieira Leite
Nehemias Monteiro Junior
Salvador
Epitácio da Silva Ribeiro
São Paulo
Aldomar Guimarães dos Santos
Daro Marcos Piffer
Natalino Yoshimi Sakamuta
DIRETORIA EXECUTIVA NACIONAL BIÊNIO 2019/20121
Presidente
Paulo Lino Gonçalves
Diretor Secretário
Ivonil Guimarães Dias de Carvalho
Diretor Financeiro
Iso Sendacz
Diretor Jurídico
Sergio da Luz Belsito
Diretor de Comunicação
Eduardo Stalin Silva
Diretor de Assuntos Previdenciários
Paulo de Tarso Galarça Calovi
Diretor de Relações Externas
Francisco de Assis Tancredi Soares
Diretor de Estudos Técnicos
Mauro Cattabriga de Barros
Diretora de Qualidade de Vida no Trabalho
José Vieira Leite
Diretor de Ações Estratégicas
Andréia Medeiros Rocha Van Schaijk
CONSELHO FISCAL NACIONAL BIÊNIO 2017/2019
Presidente
Ronaldo Ferreira (Curitiba)
Membros
Jose Raimundo dos Santos (Rio de Janeiro)
Otílio Severian Loureiro (São Paulo)
EXPEDIENTE ANO 17 NÚMERO 59 NOVEMBRO 2019
Por Sinal
Revista do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central do Brasil
Conselho Editorial
Edil Batista Júnior, Eduardo Stalin Silva, Francisco de Assis Tancredi Soares, Juan Pablo Painceira Paschoa, Maria Juliana Zeilmann Fabris, Mauro Cattabriga de Barros, Paulo de Tarso Galarça Calovi e Paulo Lino Gonçalves. Conselheiros suplentes: José Paulo Vieira, Rubens Gandelman e Tyrso Meireles Neto
Secretária: Sandra de Sousa Leal
SCS Quadra 01 – Bloco G sala 401 – Térreo
Ed. Baracat – Asa Sul – Cep 70.309900 – Brasília – DF
Telefone: (61) 33228208
Contato com a Por Sinal: porsinal@sinal.org.br
Redação
Coordenação geral e edição: Flavia Cavalcanti (Letra Viva Comunicação)
Reportagem: Alexandre Medeiros, Cristina Chacel, Jefferson Guedes
e Verônica Couto
Revisão: Olga de Mello
Diagramação: Luciana Junqueira
llustrações: Claudio Duarte
Impressão: Impressão: Ideal Gráfica e Editora Ltda
Tiragem: 8.000
Assessoria de Comunicação do Sinal Nacional: Rapport.
www.rapportcomunica.com
Permitida a reprodução das matérias, desde que citada a fonte.
O Conselho Editorial não se responsabiliza pelas opiniões expressas nos artigos assinados.
REFORMA ADMINISTRATIVA
A escala do Estado minímo
GOVERNO INSISTE NA IDEIA DE QUE O BRASIL QUEBROU E DE QUE
É PRECISO CORTAR MAIS GASTOS. PRÓXIMO PASSO É MEXER NA CONSTITUIÇÃO PARA
REDUZIR A MÁQUINA PÚBLICA À METADE.
CRISTINA CHACEL
Prestes a completar um ano no poder, o governo já não surpreende a nação com sua agenda ultraliberal, largamente professada por colaboradores e simpatizantes, divulgada aos quatro ventos pela imprensa para formar a opinião pública. Aprovada a reforma da Previdência, o próximo passo para levar o país ao Estado mínimo é a reforma administrativa, que, ao fim e ao cabo, pretende reduzir a máquina pública brasileira à metade. Para incredulidade de seus críticos, o ambiente político favorece o governo.
Ridicularizado na cena internacional e com popularidade em queda livre, o Executivo tem encontrado boa acolhida para suas manobras radicais nas duas casas legislativas e no Supremo Tribunal Federal. Mesmo que algumas dessas manobras imponham quebrar o pacto federativo celebrado em 1988, porque, afinal, como sustenta o ministro da Economia, Paulo Guedes, a Constituição já não cabe no Orçamento.
Mas se institucionalmente os ventos parecem soprar a favor do governo, na economia o quadro é de depressão, com alto nível de desemprego, indústria ociosa, empobrecimento da população e crise de demanda: “O Brasil está crescendo muito pouco, 1% ao ano. Neste ritmo, o país só recupera o nível de produto de 2014 no ano de 2024. Dez anos para poder voltar ao patamar econômico de antes da crise”, assinala a professora do Instituto de Economia da UFRJ e ex-secretária de Orçamento Federal Esther Dweck, para quem o governo, por motivações ideológicas, marcha na contramão do crescimento. O ponto de virada veio com a aprovação da emenda constitucional 95, mais conhecida como Teto de Gastos, que congelou os gastos públicos, em 2016, por 20 anos. Inexequível, o Teto de Gastos colocou o país em uma sinuca de bico. Diz a economista:
“As famílias brasileiras, empobrecidas, estão reduzindo as compras e as empresas, com capacidade ociosa muito grande, não têm razão para expandir investimentos. Não há demanda para seus produtos. Do lado externo, há uma guerra comercial entre China e Estados Unidos, uma desaceleração mundial, e, portanto, nenhuma expectativa de que as exportações venham a crescer nos próximos anos de forma a recuperar a economia brasileira. Assim, apenas um agente poderia reverter esta crise de economia estagnada: o Estado, por meio de compras públicas e investimento público. Mas o governo atou suas mãos com a Emenda 95, sem nenhuma cláusula de escape para um período de baixo crescimento.”
Esther Dweck adverte que é preciso desfazer a ideia, difundida pelo governo, de que administrar as contas públicas é como administrar o orçamento familiar: “É um mito afirmar que o governo
é como a dona de casa, não pode gastar mais do que ganha. Diferentemente de uma dona de casa, o governo tem todos os instrumentos para agir de forma contrária à retração econômica, investir em expansão de atividade, para, justamente, puxar o setor privado.”
BRASIL NÃO QUEBROU!
O governo, porém, toma o caminho inverso. Difunde a ideia de que o Brasil
quebrou e de que é preciso cortar gastos para a economia voltar a crescer. A professora da UFRJ é categórica em afirmar que não, o Brasil não quebrou e o dinheiro não vai acabar enquanto o Estado puder exercer suas funções fiscais e investir em proteção social para reativar o dinamismo na economia. E explica:
“O governo tem recursos para tirar o país da crise, por exemplo, emitindo dívida, o que não seria nada absurdo. A dívida cresceu mais de 20 pontos nos últimos cinco anos. Se crescesse 2 pontos para aumentar o investimento público, aumentar o Bolsa Família, oferecer um abono extra, pagar mais parcelas de seguro-desemprego, como já se fez no passado, ou seja, redistribuir renda para os mais pobres, teria um potencial enorme para retomar o crescimento. A atual equipe econômica tentou isso pelo FGTS, mas, da maneira como fez, não gera uma grande recuperação. Teria mais resultados contratando serviços e realizando investimentos, retomando obras paradas. Outro caminho é recuperar a carga tributária para o patamar pré-crise, que, em termos federais, perdeu mais de dois pontos de arrecadação de PIB. Por meio de uma tributação progressiva, taxando os mais ricos, recuperaria a perda e poderia obter esse mesmo aumento de dois pontos nos seus gastos, sem comprometer o resultado fiscal.”
Trata-se de uma visão desenvolvimentista diametralmente oposta à da agenda ultraliberal, que aposta na chamada
contração fiscal expansionista, pela qual se o governo contrair gastos e
fizer o dever de casa, a economia volta a crescer, puxada pela fada da
confiança. Diversos estudos, inclusive dos autores italianos
formuladores desta tese, já demonstraram que isso não é verdade. Alberto Alesina, Carlo Favero e Francesco Giavazzi apresentaram a evidência de 107 casos de contração fiscal no mundo. Apenas 26 países tiveram algum crescimento econômico após um ajuste fiscal. Deles, somente seis países passavam por recessão no momento do ajuste, e, dos seis, só dois registraram taxa de crescimento maior que a do período anterior ao ajuste. Por fim, a dívida pública não aumentou apenas em um desses países.
Diante dessas evidências, há uns bons anos a ideia de corte indiscriminado de gastos, preconizada pelos ultraliberais, vem sendo revista. O próprio FMI já propõe regras fiscais mais flexíveis, que garantam uma trajetória a médio prazo de sustentabilidade da dívida. Vários textos mostram que o ajuste fiscal tende a se autodestruir, a agravar a desigualdade, a ser recessivo, e, assim, a não recuperar a economia.
De 2003 a 2014, a dívida pública interna brasileira se manteve estável, ou em queda, observa Esther Dweck.
Não havia crise fiscal. A estabilidade se devia ao crescimento do PIB,
juros e arrecadação. O governo gastava menos do que arrecadava, mesmo com o gasto público acelerado. Foi um círculo virtuoso da economia. O investimento público cresceu, o PIB cresceu, a arrecadação cresceu e a dívida pública permaneceu estável. A partir de 2015, o quadro se inverte. O governo faz um grande ajuste, corta gastos, a economia entra em desaceleração, o PIB desce em 4%, a arrecadação cai, os juros disparam e o país registra déficit primário naquele ano. O que fez a dívida aumentar, sustenta a professora, não foi a aceleração de gastos, mas a recessão econômica.
“O crescimento dos gastos foi de quase zero. Portanto, é mentira que os gastos produziram dívida. Mas essa mentira serve para o governo argumentar que é preciso cortar gastos. Trata-se, agora, de um círculo vicioso. O governo corta gastos e produz mais dívida, alimentando uma crise de demanda numa economia mantida em depressão por um receituário ultraliberal. É uma mudança de país.”
ORÇAMENTO BASE ZERO
O jornalista, analista e consultor político Antônio Augusto de Queiroz,
diretor licenciado do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap),
é outro crítico da visão fiscalista e chama a atenção para a proposta do governo de desvincular receitas e despesas do orçamento público, desobrigar todos os gastos, aí incluídos aqueles comprometidos com educação e saúde, e desindexar despesas governamentais. Também chamada de Orçamento Base Zero, a proposta, segundo ele, é mais uma ferramenta da Emenda do Teto de Gastos destinada a reduzir a participação dos pobres no Orçamento federal.
“O conjunto de reformas vem no rastro da Emenda 95, porque a verba de privatização não pode ser usada em custeio, destina-se a saldar dívida. A opinião pública tem sido convencida de que os gastos são muito altos, quando eles estão congelados nos patamares de 2016. Junto, vem a visão ideológica de que o Estado é inchado e ineficiente, antagonista do capitalismo e capturado pela esquerda.”
Antônio Queiroz lembra que esta já é a quinta vez que as forças de mercado tentam implantar uma agenda neoliberal
no país. A primeira foi durante a própria Assembleia Nacional Constituinte, no biênio 1987/88, a cargo do grupo político então conhecido como Centrão. A segunda, na Revisão Constitucional, não obteve êxito porque o tempo foi curto e pela falta de interesse do então presidente Itamar Franco. Na terceira, no governo Fernando Henrique Cardoso, o plano de empreender cinco reformas simultâneas terminou inconcluso. O caminho acabou sendo aberto durante o breve governo Temer, que criou um espaço muito grande para a agenda neoliberal, aprovando o Teto de Gastos e a reforma trabalhista.
Agora, segundo o diretor do Diap, uma série de fatores concorre para um alinhamento forte com esta agenda. O governo não tem recursos, o mercado está na expectativa e quem poderia resistir vem sofrendo perseguições, caso dos trabalhadores da iniciativa privada, servidores e sindicatos, que perderam a fonte de custeio, representada pela contribuição sindical obrigatória, extinta na reforma trabalhista.
“Nunca houve um alinhamento tão grande para a adoção desta agenda. O ambiente é de debate interditado, ideologicamente, com a sociedade dividida. Servidores têm feito esforço de resistência, mas não contam com apoio da mídia. O Congresso, Câmara e Senado, por sua vez, têm um perfil fiscalista, liberal, assim como o Supremo. Há uma forte perseguição política”, denuncia Queiroz.
Com 543.626 servidores civis ativos (há ainda 407.732 inativos e 282.244, pensionistas), Antônio Queiroz lembra o propósito do governo, como anuncia- do na imprensa, no âmbito da reforma administrativa — de reduzir o pessoal em atividade a menos da metade, a partir da digitalização de serviços. A estratégia do governo, segundo ele, é transferir serviços para estados e municípios e terceirizar outra parte. E, no futuro, manter um pequeno contingente de servidores de carreiras como a do Itamaraty. No fim dessa estrada está a privatização de serviços de natureza pública, em pre- juízo dos mais pobres, a parcela da população que mais depende da proteção do Estado, o que levará ao aumento da pobreza e da desigualdade.
“Depois do Teto de Gastos e da re- forma da Previdência, se o governo conseguir aprovar o Orçamento Base Zero combinado com a reforma administrativa e a privatização das estatais, o serviço de demolição do Estado estará concluí- do, abrindo espaço para o fornecimento de vouchers à população carente para a compra de educação e saúde no setor privado”, alerta o diretor do Diap.
FRENTE DE RESISTÊNCIA
Mesmo sem saber o que exatamente vem por aí, servidores articulam uma resistência dentro do Congresso Nacional, onde já tramitam mais de 20 projetos, o público sobre o funcionamento da máquina do Estado.
O documento leva a assinatura da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, instalada em setembro, sob a coordenação do deputado Prof. Israel Batista (PV-DF), integrada por 235 deputados de 23 partidos, além de seis senadores. Um time formado para defender o serviço público e as prerrogativas dos servidores. A cartilha tem ainda o apoio de mais de 50 entidades dentre elas o Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central — Sinal).
Em estado de alerta, os servidores não querem perder tempo. Produzida antes mesmo de o governo oficializar uma proposta, a cartilha responde às críticas liberais ao papel e ao lugar do Estado na vida brasileira, que servem de justificativa e argumento à reforma administrativa, “condicionada pela ideologia do Estado mínimo e pelas políticas de austeridade”. Organizador do documento, o economista José Celso Cardoso Jr., presidente da Associação de Funcionários do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Afipea), vive o calor do debate.
O documento foi elaborado com base em manifestações e declarações na imprensa e nos posicionamentos assumidos publicamente por economistas que abastecem as políticas neoliberais do Executivo, como Armínio Fraga Neto, ex--presidente do Banco Central do Brasil e sócio-fundador da Gávea Investimentos, autor, com Ana Carla Abrão e Carlos Ari Sungfeld, do artigo intitulado A Reforma do RH do Governo Federal, produzido para a Oliver Wyman, empresa de consultoria internacional, especializada em estratégia de negócios. Ou como o relatório Gestão de pessoas e folha de pagamentos no setor público — o que os dados dizem?, apresentado pelo Banco Mundial na segunda semana de outubro, pelo qual o Brasil está diante de “uma janela de oportunidade para a realização de re-formas administrativas”, o que indica a necessidade de “mudanças na gestão de recursos humanos”.
“O governo se apoia em documentos da iniciativa privada, todos com uma visão de fora, de mercado, sobre
o Estado e a máquina pública. Não sabemos qual estratégia vai adotar. Se encaminhará uma peça só, mais difícil de aprovar, porque a resistência é grande,
ou se pretende aprovar a reforma em fatias, pelos projetos que já tramitam no
Congresso, motivados não para melhorar a eficiência e a qualidade do serviço
público, mas unicamente para reduzir gastos, privatizando tudo o que for
possível”, critica José Celso.
Já se sabe que o ideário liberal que norteia o pacote de medidas tem quatro
linhas mestras. A primeira prevê cortar gastos com o funcionalismo civil,
adiando concursos por tempo indeterminado, terceirizando contratações,
estabelecendo contratos temporários, reduzindo jornadas e salários de entrada, e
revisando tabelas de progressão, alongando-as no tempo de modo a impedir que os
servidores cheguem ao topo de remuneração.
A segunda linha mestra é a flexibilização do estatuto da estabilidade. Várias
são as razões que legitimam esta estabilidade, como lembrou a economis-ta Esther
Dweck, entre elas a de garantir independência ao servidor na defesa do interesse
público e de assegurar ao Estado memória de gestão. José Celso acrescenta:
“A Lei 8.112/1990, do Regime Jurídico Único, já prevê formas de demissão. A
estabilidade não é absoluta. A Controladoria Geral da União contabilizou 7.588
demissões de 2003 a julho de 2019, o que dá uma média de 500 demissões por ano.
Mas o governo quer ir além. Quer demitir concursados a partir de uma proposta de
avaliação de desempenho (já tramitando no Congresso) mais rígida e mais
subjetiva, que caracteriza uma perseguição ao servidor.”
A redução da estrutura organizacional, hoje constituída por 310 carreiras, para
cerca de 30 carreiras, é a terceira linha mestra do governo, que espera, assim,
centralizar e racionalizar a gestão de pessoal, facilitando a mobilidade entre
órgãos.
“Substituir cargos administrativos por tecnologias moderninhas. É claro que
existem ajustes possíveis, mas o governo usa como regra o ajuste fiscal”,
observa o presidente da Afipea.
Por fim, o quarto eixo de reforma administrativa são medidas criadas para dificultar a ação sindical, como proibir o desconto da contribuição sindical voluntária em folha, impedir reuniões nos locais de trabalho e cobrar reposição de horas em caso de ausência motivada por atividade sindical.
O documento dos servidores públicos brasileiros sobre a reforma administrativa
pretendida pelo governo Bolsonaro destaca sete mitos liberais que contribuem
para uma visão distorcida do Estado e da máquina pública do país. São eles:
MITO 2 – AS DESPESAS COM PESSOAL SÃO MUITO ALTAS E ESTÃO DESCONTROLADAS Na comparação da oferta de serviços públicos entre 2002 e 2018, o número de
famílias beneficiadas pelo Bolsa Família aumentou de 2,3 milhões para 4,6
milhões, respectivamente. A cobertura do seguro-desemprego cresceu de 4,8
milhões para 6,2 milhões de brasileiros. Os procedimentos ambulatoriais subiram
de 1,8 bilhão para 3,7 bilhões (2013) e os atendimentos na atenção básica
saltaram de 868 milhões para 1,2 bilhão. Na Educação, a aquisição de livros
didáticos subiu de 96 milhões, em 2005, para 144,2 milhões em 2018. E as
matrículas na educação profissional de nível médio cresceram de 279 mil para
1,791 milhão no mesmo período. |
JOSÉ NASCIMENTO ARAÚJO
DESEMBARGADOR FEDERAL DO TRABALHO
Reforma Trabalhista Fracassou
Aprovada em novembro de 2017, durante o governo Temer, a reforma trabalhista completa dois anos com muito pouco a comemorar, acreditando-se que ela foi editada para dinamizar o mercado e beneficiar o trabalhador brasileiro. As expectativas não se realizaram e o índice de desemprego permanece inerte, com 12,6 milhões de brasileiros sem trabalho e 40 milhões, o equivalente a 41,1% da popu- lação empregada do país, atuando na informalidade, segundo o IBGE. Mas se não rendeu trabalho, a reforma trabalhista teve grande êxito em abrir caminho para a implantação da agenda ultraliberal do governo Bolsonaro, que completou o serviço sancionando, em setembro, a Lei da Liberdade Econômica, conhecida também como minirreforma, que elimina barreiras e controles para a abertura de empresas, de modo a estimular o empreendedorismo no país. Em entrevista à Por Sinal, o desembargador federal do Trabalho José Nascimento Araújo critica as mudanças, analisa seus impactos e sentencia: “A reforma de 2017 e a nova Lei de Liberdade Econômica espelham uma cultura de absoluto desprezo pelo trabalho humano”.
Qual a sua avaliação sobre o impacto da reforma trabalhista na geração de
novos empregos?
Passados dois anos, os resultados são muito fracos. O mercado de trabalho,
definitivamente, não reagiu. Se a taxa de desem- prego de 2017 sofreu redução
muito pequena, foi em função da entrada de um contingente grande de
trabalhadores na informalidade e em postos de trabalho absurdamente precários.
A regulamentação do trabalho intermitente gerou pouco mais de cem mil vagas
no mercado de
trabalho, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério
da Economia (Caged).
O governo anunciou a criação de 2,2 milhões de empregos, ou 55 mil vagas por
mês, nesta modalidade. O que não deu certo?
A Lei 13.467 tornou o emprego mais precário e o custo de mão de obra mais baixo.
Ela importou uma série de formas de trabalho que já existiam lá fora. O problema
é que importou as piores formas. Em países como Portugal e Itália, por exemplo,
o contrato de trabalho intermitente só vale para quem tem menos de 25 ou mais de
60 anos, que encontra dificuldade grande em se alocar no mercado de trabalho. Ou
para setores da economia que a sazonalidade justifique, como o comércio. Além
disso, há a garantia de um ganho mínimo. Mas o Brasil importou o modelo
britânico, que é o zero hour contract. No limite, o seu contrato pode ser de
zero hora a zero centavo de remuneração. E o que a gente verifica, dois anos
depois, é que se pretendia gerar novos empregos, a reforma trabalhista fracassou. Os pouquíssimos ganhos registrados no Caged e pelo Dieese mostram que o
mercado não se interessou pelo trabalho intermitente. Na verdade, ele é muito
ruim para o trabalhador, e aquilo que é muito ruim para o trabalhador o mercado
acaba rejeitando, naturalmente.
Mas a regulamentação do trabalho fora da empresa, o teletrabalho, não vem
atender às aspirações de muitos trabalhadores, que trabalham com o apoio de
tecnologias?
O teletrabalho é necessário, é importante, atende à mão de obra feminina, com
sua tripla jornada, o pessoal que tem dificuldades de locomoção, portadores de
deficiência, e o setor de serviços, consultores, advogados, jornalistas. Mas a
modalidade que a gente trouxe para o mundo do trabalho no Brasil não estabelece nenhum
limite de jornada. Na França, por exemplo, existe uma lei que prevê o direito à
desconexão.
Qual o impacto da terceirização no mercado de trabalho brasileiro?
A reforma regulamentou a terceirização de toda e qualquer atividade das
empresas, inclusive as atividades-fim. Hoje em dia, uma escola pode terceirizar
os serviços de um professor, ou um jornal terceirizar o repórter. Eu acho muito
ruim. A experiência de terceirização, em outros países, responsabiliza aquele
que terceiriza, que toma os serviços, de uma forma mais severa. Aqui, a ideia é
flexibilizar para atender a uma visão de redução do custo do trabalho.
A nova Lei da Liberdade Econômica, sancionada pelo presidente Bolsonaro,
aprovou medidas de desburocratização e legalização de empresas para
incentivar o empreendedorismo. Qual sua opinião sobre elas?
Na verdade, é um empreendedorismo do mundo do trabalho líquido. Segundo a
narrativa liberal, estamos diante de um novo tempo, em que os trabalhadores vão se libertar dos grilhões da CLT, que os
infantilizava, e vão ser estimulados a empreender. Serem patrões deles mesmos.
Só que para empreender é preciso acumular capital. Regra básica do capitalismo.
A reforma é perversa porque cria postos precarizados, com jornadas absurdas,
e, na verdade, você não deixa de estar subordinado. Essa é uma ilusão. No Uber,
por exemplo, você está subordinado a algoritmos.
Como julgar a influência dos algoritmos no mundo do trabalho?
O caso da Amazon, nos Estados Unidos, é emblemático. Com 600 mil empregados
espalhados pelo mundo, a empresa acom- panhava a movimentação e o dinamismo de
cada um deles pelo chip do crachá eletrônico. Quando precisou fazer um corte
drástico, o algoritmo selecionou os menos dinâmicos para serem demitidos. E foi
um escândalo porque, entre os dispensados, havia um contingente enorme de
mulheres grávidas, que naturalmente tem um ritmo mais lento, precisam ir ao
banheiro com mais frequência, se movimentam menos. Mas o algoritmo não vê isso.
A tecnologia não tem beneficiado o empregado nas relações de trabalho...
Os ultraliberais dizem que quanto mais “uberizado” o trabalho, menos proteção se
exige, porque são empreendedores autô- nomos. Mas o que a experiência mostra é
que quanto mais a tecnologia entra no mundo do trabalho, mais forte está sendo o
controle sobre o trabalho humano. Quando o passageiro sai de um Uber,
automaticamente recebe uma mensagem para avaliar o serviço prestado pelo
motorista. Você pode dizer que esse motorista é um empreendedor autônomo, que
presta contas somente a si próprio?
Mas a CLT, uma senhora quase octogenária, não está defasada?
Uma das falácias da reforma e da minirreforma é de que a legislação trabalhista
está velha e precisa ser ultrapassada. Na verdade, eles criticam algo que já não
existe. Mais de 80% da CLT já foram atualizados à realidade do mercado, ao longo
de seus 76 anos, por súmulas do Tribunal Superior.
Houve impacto da reforma trabalhista na Justiça do Trabalho? O que mudou na
rotina dos juízes?
A Justiça do Trabalho sentiu o impacto da reforma. Já no primeiro ano, registrou queda de 38% no número de ações, frente a um patamar
histórico de cerca de 2 milhões de novas ações trabalhistas que entravam todos
os anos. Mas as pessoas comemoram essa queda na distribuição como sendo um dos
sintomas do sucesso da reforma. Vivemos em um país com 210 milhões de habitantes
em que a população economicamente ativa é de 130 milhões de pessoas. Um país com
um nível de conflito de trabalho altíssimo. Nenhum país que passa por 350 anos
de escravidão, uma história que acaba apodrecendo a sociabilidade brasileira,
escapa de reproduzi-la nas relações de trabalho. O número de processos caiu, não
porque o número de conflitos caiu.
Recorrer à justiça ficou mais caro...
A reforma trabalhista, no campo do direito processual do trabalho, tem a clara
intenção de dificultar o acesso do traba- lhador à Justiça do Trabalho. Sempre
foi baratíssima, quase gratuita. Agora é cara. O trabalhador passou a pagar as
custas do processo, em caso de derrota. Pagar o advogado do patrão. As ações
caíram porque a Justiça ficou mais cara e o trabalhador tem menos direitos a
reclamar.
A reforma enfraquece o direito do trabalho?
Se o governo desidrata brutalmente o direito do trabalho, tor- na um direito
muito simplório, para que você precisa de um aparato tão grande? Transforma em
um pequenino juizado de pequenas causas, que estagiários leigos podem operar.
Antes tínhamos um instituto robusto de direito de trabalho e um arcabouço
jurídico importante. Hoje, está em pauta a extinção a Justiça do Trabalho, ou a
conversão em algo menor. Existe a possibilidade de que ela seja absorvida pela
Justiça Federal. Virar um apêndice. Na prática, é tentar colocar o Brasil dentro
do mapa de Portugal, porque a Justiça do Trabalho tem um aparato muito grande e
a Justiça Federal é pequena, enxuta, sem capilaridade. A minha preocupação é que
em um país como o Brasil é necessária uma instância forte para mediar conflitos.
Não sei o tamanho. Talvez possa ser menor, mas não um apêndice. O que estamos
vivendo faz parte do desmonte. E as consequências são trágicas. Os conflitos não
vão desaparecer. Eles vão migrar para alguma outra instância da vida social.
Provavelmente para as ruas. Provavelmente produzindo um aumento da violência, ou
da criminalidade. E, certamente, da desigualdade.
SEM REDE SOCIAL PAÍS FICARÁ AINDA MAIS POBRE
IMPACTO SERÁ IMENSO. BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS SÃO A PRINCIPAL FONTE DE RENDA DE 87,9% DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS, EVITANDO A FOME E A DESNUTRIÇÃO, ALERTA ESTUDO DA ANFIP.
Verônica Couto
A reforma da Previdência aprovada no Congreso reduz drasticamente a renda na sociedade, sacrifica os pobres, entrega as aposentadorias mais altas aos fundos e bancos privados, por meio da abertura da previdência complementar do setor público, e quebra a economia da imensa maioria dos municípios brasileiros, que sobrevive graças à movimentação dos proventos dos aposentados.
Para o economista Eduardo Fagnani, professor do Instituto
de Economia da Unicamp e autor do livro Previdência Social: o debate
desonesto, o corte estimado entre R$ 800 bilhões e R$ 1 trilhão nos
benefícios sociais, em dez anos, vai transformar o Brasil em um país de
miseráveis. Com a redução do valor dos benefícios e a dificuldade em cumprir
as novas regras de acesso a eles, a expectativa é de empobrecimento da
população idosa e, com isso, de deterioração econômica em todas as regiões
do país.
O papel crucial desempenhado pelas receitas do INSS é constatado na pesquisa
A Previdência Social e a Economia dos Municípios, publicada pela Associação
Nacional dos Auditores Fiscais da Receita (Anfip), com base em dados de
2017, relativos aos pagamentos de aposentadorias do Regime Geral (sem
incluir benefícios assistenciais, seguro-desemprego, nem aposentadorias de
servidores públicos). Em 87,9% dos 5.570 municípios brasileiros um
total de 4.896 cidades, o pagamento de recursos da Previdência supera a
arrecadação tributária munici-pal. E mais: em 73% dessas localidades, as
aposentadorias ultrapassam o que a cidade recebe do Fundo de Participação
dos Municípios (FPM), formado por repasses da União de parcelas do IR e do
IPI, e que se constitui na segunda maior categoria de transferências,
perdendo apenas para os repasses de ICMS.
“Se hoje já temos um desemprego acentuado e uma informalidade galopante, é
certo que a dificuldade de acesso aos benefícios da Previdência vai aumentar
o número de pobres no Brasil”, alertou o autor da pesquisa da Anfip e
ex-presidente do Conselho Executivo da entidade, Álvaro Sólon de França. O
levantamento destaca, por exemplo, São Luiz Gonzaga do Maranhão (MA), cidade
de 25 mil habitantes, a maioria dedicada à agricultura familiar. Lá os
benefícios previdenciários equivalem a 66 vezes o total arrecadado pela
prefeitura. Em Serra da Bahia (BA), os recursos da Seguridade somam 38 vezes
mais.
As perdas para as economias locais não se restringem ao
Nordeste. Segundo o trabalho da Anfip, em todos os municípios do Espírito
Santo e do Rio de Janeiro, incluindo as capitais, o total de benefícios
pagos é maior do que os recur-sos repassados do FPM. Já em São Paulo, embora
a arrecadação total do estado supere os pagamentos do INSS, o repasse do FPM
é menor do que estes em 86,2%das 645 cidades paulistas.
A FONTE VAI SECAR
Com base nesses e em outros dados significativos sobre a realidade econômica
dos municípios brasileiros, a pesquisa sustenta que os benefícios
previdenciários são a única fonte de renda de milhares de famílias em todas
as regiões do Brasil, evitando a fome e a desnutrição, além de retirar um
sem-número de cidadãos da situação de miserabilidade.
Segundo a Nota Técnica nº 9, do Centro de Estudos de Conjuntura e Política
Econômica (Cecon), do Instituto de Economia da Unicamp (IE-Unicamp),
intitulada A Contabilidade Criativa na Reforma da Previdência e o Aumento da
Pobreza: Novos Dados e Tréplica à Resposta Oficial, em quase 8 milhões de
domicílios a única fonte de renda é a aposentadoria, e, em 13,5 milhões
deles (63,3% do total), a receita paga pelo INSS é a principal fonte.
Para os estudiosos do Cecon que se debruçaram sobre os microdados do INSS
liberados pelo governo apenas durante a CPI da Previdência, em 2017—, está
claro que as novas regras atingem principalmente esses trabalhadores de
renda mais baixa e em situação de maior vulnerabilidade social, dos quais
virão 90% dos R$ 800 bilhões que o governo pretende economizar. Eduardo
Fagnani confirma e lembra que menos de 1% dos aposentados recebem o teto de
R$ 5.839,45.
É o que sustenta também o estudo da Anfip. Em dezembro de 2017, foram pagos
pelo INSS mais de 34 milhões de benefícios vinculados ao Regime Geral da
Previdência Social (RGPS). Desse total, 24,9 milhões se destinaram ao setor
urbano e 9,5 milhões à área rural. “O mais impressionante é que a maior
parte dos benefícios pagos, 67,7%, correspondeu a um salário mínimo, sendo
que, na clientela urbana, esta faixa de beneficiários representou 55,6% do
total e, no meio rural, quase a totalidade dos benefícios, alcançando
99,3%.”
Tomando a base de aposentados e dependentes apurada na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad) de 2017, realizada pelo IBGE, os pesquisadores
do Cecon demonstram que a redução, imposta pela reforma da Previdência, de
pelo menos 30% no valor do benefício dos mais pobres, embora pequena em
valor absoluto, significaria um aumento no número de pobres em mais de 4,1
milhões de pessoas (no estudo, o critério de pobreza é de meio salário
mínimo per capita na família). Uma estimativa alarmante, mas que os
pesquisadores classificam como “conservadora”. A realidade pode ser ainda
mais crítica.
Os pesquisadores citam estudo de 2018 do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC)
e da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), que apontou cerca
de 14 milhões de idosos como principais responsáveis financeiros das
famílias, o que faziam com grande dificuldade. De acordo com o relatório do
SPC/CNDL, 43% dos brasileiros acima de 60 anos são os principais
responsáveis pelo pagamento de contas e despesas da casa. O percentual é
ainda maior (53%) entre os homens. De modo geral, 39% dos idosos brasileiros
pagam as contas em dia, mas fecham o mês sem recursos excedentes. Outros 14%
nem sempre conseguem pagar as contas e, algumas vezes, precisam fazer
esforço para administrar o dinheiro que recebem. Já 4% nunca ou quase nunca
conseguem honrar os compromissos financeiros, diz o levantamento do SPC/CNDL.
REGRAS PERVERSAS
Exigências maiores e aumento do tempo para obter o benefício, além de cortes
em auxílios e pensões, são as modificações propostas na reforma da
Previdência que virão a agravar a pobreza. Além disso, para os servidores
públicos federais, o impacto negativo deriva do aumento da contribuição em
folha e da abertura ao mercado privado das previdências complementares (veja
boxe na página 18). No Regime Geral, a reforma institui uma idade mínima
para a aposentadoria — 62 anos para mulheres e 65 para homens —, além de
período obrigatório de contribuição de pelo menos 15 anos para mulheres e de
20 anos para homens que ingressem no sistema com a nova Previdência em vigor
(os homens que já são contribuintes terão prazo menor, de 15 anos). Este
tempo dará direito a apenas 60% do valor do benefício. A partir daí, serão
acrescidos 2% por ano de contribuição, até o limite de 100%, ou 35 anos de
contribuição para mulheres e 40 anos para homens, necessários para obter o
benefício integral. Uma meta inalcançável para a grande maioria dos
trabalhadores.
Estudo da economista Denise Gentil, da UFRJ, calculou que os brasileiros
contribuem para a Previdência, em média, cinco meses por ano. Para chegar
aos 40 anos exigidos pelo governo para a aposentadoria integral, seria
preciso trabalhar por 96 anos. Para receber o valor parcial, de 60%, 20 anos
de contribuição vão representar, na vida real, um período de 48 anos.
O valor da aposentadoria também cai porque o cálculo passa a ser feito com
base em todos os salários, e não mais sobre os 80% das maiores remunerações.
Outra medida apontada como particularmente perversa para pensionistas de
baixa renda é a proibição de acumular benefícios. Ou seja, se um dos
cônjuges de um casal de aposentados falecer, a renda familiar cairá
imediatamente pela metade ou até menos. Se o viúvo ou a viúva tiver alguma
fonte de renda declarada — como pequeno empresário MEI, por exemplo —,
também perderá o direito ao benefício, favorecendo a informalidade e a
precarização.
Para a economista Laura Tavares, professora da UFRJ, com doutorado em
Economia do Setor Público pela Unicamp, a reforma vai pôr abaixo um pilar da
estrutura da sociedade brasileira, com consequências drásticas. E explica: a
seguridade social do Brasil tem o percentual mais alto de inclusão da
América Latina, protegendo 82% dos idosos do país e atendendo a cerca de 140
milhões de pessoas, incluídos aí as aposentadorias, assistência social, as
famílias dos beneficiários e o seguro-desemprego. O país, no entanto, gasta
apenas cerca de 7% do PIB com essa política, enquanto os EUA aplicam 14% do
seu produto interno em saúde e deixam praticamente metade da população de
fora.
Os 200 mil, aproximadamente, que chegaram ao
serviço público entre 2004 e 2013 receberão aposentadorias
menores — redução de 15% a 40% em comparação com as regras
atuais, precisando comprovar 20 anos de serviço público. Os 140
mil que entraram após a previdência complementar sofrerão com a
redução no benefício do Regime Próprio da Previdência Social. Já
os que ainda não se aposentaram também deixarão pensões
significativamente menores para cônjuges e dependentes.
“A capitalização continua na pauta”, diz o economista. “Nessa carteira de trabalho que querem criar para concorrer com a CLT, o empregador não pagaria a Previdência. E quem optar por ela entraria na capitalização individual. No futuro, só teríamos emprego pela carteira verde e amarela.” Um modelo desse tipo quebra o Regime Geral. Para assegurar a continuida-de dos pagamentos de benefícios, seria preciso aportar recursos fiscais a fundo perdido. Um custo de transição que o governo resiste a revelar. “O Chile está pa-gando essa transição ainda, que custou entre 4,5% e 5% do PIB”, adverte Fagnani. Não custa lembrar que o regime de capitalização, menina dos olhos do minis-tro Guedes, foi adotado no Chile em 1981, ainda na ditadura militar. Em 2015, 34 anos após a privatização da seguridade e quando a demanda das novas aposentadorias bateu às portas do sistema, 90,9% recebiam menos do que um salário mínimo, segundo dados da entidade independente Fundação Sol. Combinada à privatização dos serviços de água e luz, a mudança conduziu o país a um processo de profundo empobrecimento. É o que sinalizam as manifestações que pararam o país nas últimas semanas.
|
O TAMANHO DA POBREZA
O Regime Geral da Previdência, a assistência social e o seguro desemprego,
que compõem a Seguridade Social, são o maior mecanismo de proteção social do
país. Desmontar essa rede, e perder seu principal meio de transferência de
renda, justamente quando piora a qualidade de vida no país, é uma combinação
desastrosa.
A proporção de pessoas pobres no Brasil aumentou de 25,7% em 2016 para 26,5%
em 2017, conforme dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, que
considera a linha de pobreza definida pelo Banco Mundial (rendimento de até
US$ 5,5 por dia, ou R$ 406 por mês). Em números absolutos, esse contingente
variou de 52,8 milhões para 54,8 milhões ou mais 2 milhões de pessoas neste
fio da navalha. Dentro desse grupo, na sua ponta mais crítica, na extrema
pobreza, estão 15,2 milhões de brasileiros com renda inferior a US$ 1,90 por
dia (R$ 140 por mês), que já eram 7,4% da população em 2017, contra 6,6% no
ano anterior. Um aumento também de 2 milhões de cidadãos. Regionalmente, o
Nordeste tem 44,8% da população em situação de pobreza (25,5 milhões de
pessoas); a Região Sul, 12,8% (3,8 milhões de pessoas); e o Sudeste, 17,4%
(15,2 milhões de pessoas). A pesquisa da Anfip cita outro estudo, feito pelo
próprio governo, que comprova a importância da Previdência na redução da
pobreza. Intitulado Evolução da Proteção Previdenciária no Brasil 2017
, da Coordenação Geral de Estudos Previdenciários da Secretaria de
Previdência do então Ministério da Fazenda, ele foi publicado no Informe de
Previdência Social de junho de 2018. Segundo esse trabalho, sem as
transferências previdenciárias, o percentual de brasileiros situados abaixo
da linha da pobreza alcançaria 46,5%. Com a redistribuição proporcionada
pela Previdência Social, esse percentual se reduz para 31,3%. A situação de
pobreza, nesta metodologia, considera aqueles com renda domiciliar per
capita inferior a meio salário mínimo de 2017 (R$ 468,50).
FORA DA CONSTITUIÇÃO
Outra questão importante preocupa os opositores da reforma. Se as condições
previstas já são duras, elas podem piorar, porque mais de 80 dispositivos da
proposta exigem regulação por leis complementares, mais fáceis de serem
aprovadas. “A desconstitucionalização da Seguridade, feita nesta reforma, é
gravíssima”, alerta Eduardo Fagnani.
No caso do Benefício de Prestação Continuada, por exemplo, pago atualmente a
deficientes e a idosos com 65 anos ou mais que tenham renda familiar por
pessoa inferior a um quarto do salário mínimo, a oposição conseguiu evitar a
redução de 40% no seu valor, preservando a quantia de um salário mínimo, mas
as regras para acesso aos benefícios poderão ser regulamentadas em lei
complementar, restringido o seu alcance.
A economista Laura Tavares explica que, pelo modelo instituído na
Constituição de 1988, a contribuição do agricultor familiar era feita com
base no valor do produto comercializado por ele. O modelo é importante para
a
universalização dos benefícios rurais, ao garantir que todos recebam pelo
menos um salário mínimo. No entanto, uma das possibilidades discutidas
recentemente no Congresso prevê a criação de uma contribuição mensal para
esses trabalhadores a ser definida em lei complementar. “Como vão conseguir
contribuir mensalmente, se a atividade é sazonal, sem ganhos nos períodos de
entressafra ou nas secas?”, questiona.
A Previdência Social pagou 34,5 milhões de benefícios do Regime Geral em
2017. Segundo o IBGE, para cada beneficiário da Previdência Social há, em
média, 2,5 pessoas atendidas indiretamente. Assim, a Previdência atendeu
direta e indiretamente, incluindo o titular do benefício, a 120,5 milhões de
pessoas, ou seja, 57,57% da população brasileira, sem contar os
contribuintes dos Regimes Próprios — servidores federais, estaduais e
municipais.
DESESTRUTURAÇÃO FAMILIAR
O reflexo do pagamento de benefícios para todo o núcleo familiar também foi
observado na pesquisa da Anfip. Os recursos garantem melhoria de habitação,
móveis, alimentação, saúde e longevidade maior do que a daqueles que não
recebem os benefícios. “São idosos que ajudam os filhos a sustentarem os
netos”, explica Álvaro Sólon.
A relação é mais evidente no meio rural, onde muitos chefes de família saem de seu lugar de origem para procurar emprego fora e deixam as “viúvas de maridos vivos” responsáveis pela casa, ou quando o jovem vai procurar trabalho e educação melhores em outros locais, e as pessoas mais idosas ficam. Os recursos da Previdência funcionam também como um seguro contra intempéries, secas, perdas de safra, assegurando algum rendimento nesses períodos, não só as pessoas da família, mas para a economia das cidades onde elas moram. “Em alguns municípios, quase a metade da população tem benefício rural”, destaca.
O compartilhamento da renda proveniente da Previdência
Rural faz com que o idoso volte a ter um papel importante no âmbito da
família, estreitando os laços de solidariedade com as gerações mais jovens
que dependem dos beneficiários. O benefício, nesse caso, diz o estudo da
Anfip, “supre a lacuna da falta de um seguro-desemprego para os filhos dos
beneficiários da área rural, apoia a escolarização dos netos, permite aos
aposentados e pensionistas adquirirem medicamentos e terem acesso a
tratamento de saúde não existente na área pública de saúde. Ou seja, a
partir da Previdência Rural constrói-se uma ampla rede de proteção básica no
tecido social rural do Brasil.”
Álvaro Sólon lembra que, ao percorrer o interior do país, ouviu muitos
trabalhadores rurais dizerem que sonhavam em completar a idade exigida pela
legislação previdenciária para se aposentarem. “No Brasil, infelizmente, a
dignidade da pessoa está associada à sua renda. Os idosos, com seus
benefícios, adquirem a respeitabilidade do seu núcleo familiar.”
Eduardo Fagnani acredita que a Reforma da Previdência, ao minar a economia
regional, poderá provocar a volta do êxodo rural, além de migrações das
cidades menores para as capitais e das capitais de regiões mais pobres para
as metrópoles mais ricas. A Seguridade Social, junto com as políticas da
área de Educação, fez o índice Gini, que mede a desigualdade e a
concentração de renda, cair em 26 pontos no Brasil, segundo trabalho da
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) citado pelo
economista.
“Não é uma política pública qualquer; a Previdência Social é a âncora do
país, um colchão para amortecer as tensões sociais, dada a nossa péssima
distribuição de renda. Ela reduz a pobreza e a desigualdade, porque os
estados e municípios mais ricos transferem contribuição para os mais pobres
— pelo princípio da solidariedade do sistema”, resume Álvaro Sólon.
Em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do
Senado, em 16 de setembro, o coordenador do Fórum de Economia Solidária do
Distrito Federal e Entorno (FESDFE), Marcelo Inácio de Souza, destacou a
falta de explicações do governo para o destino dos recursos que,
supostamente, seriam economizados com as mudanças promovidas pela PEC.
“Acredito fortemente que essa reforma vai aumentar a miséria e não tem
nenhuma relação com geração de empre-gos. Pelo contrário, parece aprofundar
o que seria uma linha muito clara de desigualdades. Os argumentos
apresentados até o momento não enfatizam a solução pós-economia de R$ 800
bilhões. Qual projeto vem na sequência para a geração de emprego?”
O coordenador do FESDFE lembrou, ainda, que a Previdência Social nem de longe é a vilã das contas nacionais, como alardeiam os defensores da Reforma. Em 2018, ela representou 24,48% do orçamento público, enquanto juros e amortização da dívida pública consu-miram 40,66% — a maior fatia do bolo —, e políticas para geração de empregos, apenas 2,68%, de acordo com dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do último mês de dezembro. “Essa economia de R$ 800 bilhões em dez anos é praticamente o que foi gasto no ano passado para pagamento de juros e amortização da dívida pública”, comparou. Culpar a Previdência, diz, é um “golpe de ilusionismo” para esconder o verdadeiro problema fiscal.
THAIS RIEDEL
PROFESSORA DE DIREITO PREVIDENCIÁRIO
Governo prepara terreno para a capitalização
Qual o impacto da reforma da Previdência para o conjunto dos trabalhadores?
É uma reforma muito complexa, que envolve temas diversos e não apenas os estritamente previdenciários, em sistemática inovadora de desconstitucionalização de direitos e constitucionalização de deveres. Assim, em vários pontos da reforma, se atribui a uma lei futura regulamentar direitos que hoje possuem status constitucional, e se cria um texto transitório que valerá até que essa futura lei seja editada.
A Proposta de Reforma da Constituição nº 6 de 2019 (PEC 6/2019) traz alterações significativas nas regras atuais, tanto no que se refere ao custeio do sistema previdenciário, quanto em relação aos requisitos para ter direito aos benefícios previdenciários e, principalmente, aos cálculos dos benefícios.
Esse novo mecanismo de desconstitucionalização de direitos certamente gera insegurança jurídica, porque tudo o que foi discutido agora, ao deixar de ter o status constitucional, poderá ser novamente alterado por meio de processo legislativo menos dificultoso, isto é, através de projeto de lei e não mais de emenda constitucional. Pelo texto transitório, observa-se claramente que já estão preparando o terreno para mudanças futuras ainda mais substanciais, como a capitalização obrigatória da previdência social. Então, certamente, virão novas mudanças em breve.
Muitas pessoas defendem ou criticam a reforma da Previdência no Brasil sem ao menos terem lido o texto apresentado pelo governo para votação no Congresso Nacional. Diferentemente do que se tem divulgado na mídia, a reforma atinge também os mais pobres e não apenas os “privilegiados”.
Ela altera, além dos requisitos dos benefícios, a sua forma de cálculo de forma drástica, sem fazer a devida distinção entre os benefícios programados (aposentadoria por idade, por exemplo) e não programados (como aposentadoria por invalidez e pensões). Isso resulta em perdas substanciais nos valores dos proventos e aposentadorias e, principalmente, nas pensões. Na prática, os valores recebidos a título de benefício previdenciário sofrerão drástica redução, se adotadas as novas regras de cálculo propostas pela PEC 6/2019, podendo alcançar perdas superiores a 50% do valor dos benefícios atuais.
Especificamente para os servidores públicos federais, quão danosas serão as modificações instituídas?
Os servidores públicos federais, que já tiveram sua situação de previdência revista em várias reformas anteriores, também serão fortemente atingidos pela atual reforma da Previdência. Com a redução do patamar antigo da integralidade (garantia do recebimento da última remuneração) para o atual teto do INSS (R$ 5.839,45) -- pois o servidor que ingressou a partir de 2013 já está limitado a esse teto --, houve uma ruptura do modelo contributivo e protetivo anterior, com diminuição das futuras receitas e aumento temporário das atuais despesas, já que existem servidores que estão em pleno processo de transição das alterações anteriores.
Essa mudança de paradigma gera um custo de transição que o governo não está disposto a bancar. Então, a reforma achou a forma perfeita de cobrir esse déficit atuarial transitório: além da criação de alíquotas ordinárias progressivas (de 7,5% até 22%), institui a possibilidade da criação de contribuição extraordinária quando comprovada a existência de um déficit atuarial no regime previdenciário. Essa contribuição extraordinária será exigida apenas dos servidores públicos, para promover seu equacionamento, com possibilidade de extensão, inclusive, para os aposentados e pensionistas.
Em relação aos benefícios, a nova regra para aposentadoria voluntária será: idade mínima de 65 anos para homens e 62 para as mulheres; tempo de contribuição de 25 anos, incluindo ainda a obrigatoriedade de 10 anos no serviço público e 5 no cargo, e cálculo proporcional ao tempo trabalhado, em que será feita uma média aritmética de todo o período contributivo, a partir da competência de julho 1994. Sobre ela incidirá uma alíquota de 60% que será acrescida em 2% por ano que supere 20 anos de contribuição (ou seja, só se aposentará com 100% quem contribuir por 40 anos). Esse mesmo cálculo será utilizado no caso da aposentadoria por invalidez (que passa a se chamar aposentadoria por incapacidade permanente).
A pensão por morte também tem mudança drástica. Pela nova regra (válida para todos os óbitos ocorridos após a promulgação da Emenda Constitucional da Reforma da Previdência), o valor da pensão corresponderá a 50% do valor da aposentadoria do servidor inativo falecido ou da aposentadoria por invalidez a que teria direito o servidor público ativo falecido, acrescido de uma cota de 10% por dependente, até o máximo de 100%. Esse cálculo por vezes representa, a depender do caso concreto, uma redução de mais da metade do valor que seria devido, se o óbito ocorresse antes da reforma. E para agravar ainda mais a situação, essas cotas não são reversíveis, de modo que o valor da pensão poderá ser reduzido ao longo do tempo, conforme a cessação da cota de cada dependente.
Outro ponto sensível da reforma é o acúmulo de proventos, pois haverá limites nas acumulações permitidas conforme o valor dos benefícios. Melhor explicando, se houver dois servidores públicos aposentados casados e um deles falece, é assegurado o direito ao valor integral do benefício mais vantajoso e de uma parte do outro benefício, apurada cumulativamente de acordo com as seguintes faixas: I – 80% do valor igual ou inferior a um salário mínimo (SM); II – 60% do valor que exceder um salário mínimo, até o limite de 2 SM; III – 40% do valor que exceder dois salários mínimos, até o limite de 3 SM; IV – 20% do valor que exceder três salários mínimos, até o limite de 4 SM; V – 10% do valor que exceder quatro salários mínimos. Na hipótese de extinção de benefício mais vantajoso, será restabelecido, a partir da data de extinção, o pagamento do segundo benefício mais vantajoso, indicado pelo interessado, pelo seu valor total.
Quais são os principais aspectos da reforma da Previdência que podem ser questionados judicialmente?
Um ponto que tem sido muito criticado é a criação de alíquotas progressivas para a contribuição ordinária, que poderá ainda ser somada a uma contribuição extraordinária, cuja alíquota ainda não está definida, a ser apurada em caso de déficit atuarial do regime próprio de previdência. Isso porque, em conjunto com a carga tributária já existente, como imposto de renda em até 27,5%, a cobrança dessas alíquotas poderá ser configurada como confisco, instituto que é vedado pela Constituição Federal e por jurisprudência do STF.
Esse tema é ainda mais sensível no cenário atual, no qual ainda não existe a unidade gestora única do Regime Próprio de Previdência Social dos Servidores da União, entidade que deveria ser a responsável por apurar essas alíquotas e eventuais déficits.
Outros pontos que também podem ser questionados dizem respeitos aos novos requisitos para acesso aos benefícios, forma de cálculo e direitos adquiridos, a depender da interpretação a ser adotada pela Administração Pública nos casos concretos.
Qual o segmento da sociedade brasileira que arcará com a maior parte desta “economia”?
Com base no ajuste fiscal, que justificaria a diminuição de despesas e o aumento de arrecadação, a PEC 6/2019 trouxe uma novidade que foi a cobrança progressiva das alíquotas das contribuições previdenciárias, conforme a renda do trabalhador ou servidor público.
Nesse ponto, cria faixas contributivas que vão de 7,5% (para quem recebe até um salário mínimo) a 22% (no caso de servidor com remuneração maior que o teto constitucional), Isso permite o governo afirmá-la uma aposentadoria mais justa, pois quem ganha mais pagará mais do que quem ganha menos.
Entretanto, quando se verificam as regras de acesso e, principalmente, de cálculo dos benefícios previdenciários, percebe-se que a camada pobre da população também terá redução drástica dos valores a serem recebidos. Então não se pode dizer que ela acaba com as desigualdades sociais.
Tanto é que a maior economia da reforma será no Regime Geral de Previdência Social, em que as pessoas recebem entre um salário mínimo (R$ 998,00) e o teto do INSS (R$ 5.839,45, em 2019). Como, em média, esses trabalhadores recebem R$ 1.400,00 em suas aposentadorias, reduzir esse patamar de renda trará sim maior pobreza para a população. E quem recebe salário mínimo, que, em tese, pagaria uma alíquota menor para se aposentar (7,5% e não mais 8% como é hoje) com a Nova Previdência, no fim das contas, também pagará mais para se aposentar, pois deverá contribuir por mais tempo (20 anos e não mais 15 anos).
Os mais prejudicados serão aqueles que hoje possuem regras específicas de aposentadoria, como as mulheres; professores e os trabalhadores que trabalham em condições especiais, como agentes insalubres e perigosos. Isto porque a PEC traz requisitos de acesso mais rígidos do que os atuais e generaliza o critério de cálculo da aposentadoria voluntária geral para todas as aposentadorias especiais, fazendo com que a aposentadoria concedida em menos tempo de contribuição, por conta do maior risco no trabalho, acabe sendo em valor menor, o que gerará prejuízos financeiros para essa população.
O que acontece com a Funpresp e com o patrimônio dos seus contribuintes?
Em relação à Previdência Complementar dos servidores públicos, a PEC 6/2019 obriga a sua criação em todos os entes da federação e retira a sua natureza pública, na medida em que poderá ser administrada por entidade aberta de previdência complementar, e não apenas por entidades fechadas como é hoje.
Entretanto, até que seja disciplinada a relação entre União, estados, Distrito Federal e municípios e as entidades abertas de previdência complementar, somente entidades fechadas de previdência complementar estão autorizadas a administrar planos de benefícios por eles patrocinados. Então, ao longo do tempo, provavelmente, a Funpresp perderá a exclusividade na gestão dos planos de previdência complementar dos servidores públicos, com possibilidade de migração dos servidores para outros fundos privados, tudo conforme nova lei a ser editada sobre o tema.
Quais são as regras de transição para os servidores -- considerando aqueles que entraram antes de 2004, entre 2004 e 2013, e depois de 2013?
Existem duas regras de transição. A primeira, que exige idade mínima (56 anos de idade para mulheres e 61 anos de idade para homens), tempo mínimo de contribuição de 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens; 20 anos de serviço público e 5 anos no cargo e pontuação (86 pontos para as mulheres e 96 para homens). Mas a idade mínima e a pontuação vão aumentando ao longo dos anos, até chegarem em 100/105 pontos. Só terá direito à paridade e integralidade os servidores públicos que entraram antes de 2003 e alcançarem a nova idade mínima (65 anos, para homens, e 62 anos, para mulheres).
A segunda regra de transição, incluída ao longo do trâmite da PEC 6/2019 no Congresso, traz como requisitos idade mínima (57 anos de idade para mulheres e 61 anos de idade para homens), tempo mínimo de contribuição de 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens; 20 anos de serviço público e 5 anos no cargo e pedágio de 100%, ou seja, exigência de um período adicional de contribuição correspondente ao tempo que, na data de entrada em vigor da emenda, faltaria para atingir o tempo mínimo de contribuição atual (30 anos para mulheres e 35 anos para os homens). Nessa regra, há a garantia à integralidade e à paridade para os servidores que ingressaram no serviço público até 2003.
São extintas as atuais regras de transição da EC 41/2003 e EC 47/2005, sendo mantido o direito adquirido aos servidores que já tiveram completados os requisitos para essas modalidades de aposentadoria.
A reforma poderá impactar na prestação dos serviços públicos e na atratividade do setor para os profissionais? A sociedade será mais uma vez penalizada?
Certos direitos que eram incentivos para a carreira pública deixam gradativamente de existir. Uma consequência possível será a menor procura pelo serviço público ou essa procura passar a ser feita por pessoas menos qualificadas, que não consigam despontar no mercado privado, o que pode comprometer a qualidade do serviço público prestado à população.
APAGÃO COMPROMETE POLÍTICAS PÚBLICAS
ALEGANDO FALTA DE RECURSOS, GOVERNO RESTRINGE ESCOPO DAS
PESQUISAS, PREJUDICANDO O COMBATE À FOME, À DESIGUALDADE E AO DESMATAMENTO
NA AMAZÔNIA
Jefferson Guedes
A informação estatística cumpre papel fundamental em todas as fases de implementação das políticas públicas. Grandes conquistas da sociedade brasileira, como a universalização da educação básica e a criação de um sistema público de saúde, só se tornaram viáveis porque havia dados de boa qualidade coletados e analisados pelo IBGE e por outras instituições de planejamento e estatística.
O governo Bolsonaro não pensa dessa forma. “Não passa um único mês sem que o
presidente não questione os índices de desemprego do IBGE, dizendo que foram
feitos para enganar a população e discutindo até mesmo os métodos de
pesquisa”, afirma Luanda Botelho, coordenadora da Associação dos Servidores
do IBGE (Assibge).
O questionamento, porém, não se limita ao IBGE. Em maio, o governo decidiu
vetar a divulgação dos dados coletados pela Fiocruz no 3º Levantamento
Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Motivo: a fundação
não confirmou a existência de uma "epidemia das drogas", contrariando a
posição do ministro da Cidadania, Osmar Terra, sobre o tema.
Dois meses depois, Bolsonaro levantou dúvidas sobre os dados a respeito do
desmatamento na Amazônia, divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe). Assim como o censo da Fiocruz sobre drogas questiona a
nova política para a área, o trabalho do Inpe colocou em evidência o aumento
nas taxas de desmatamento, o que, por sua vez, é o resultado esperado de um
projeto político que visa a anular a fiscalização ambiental, acabar com as
áreas protegidas e reduzir as demarcações de terra indígena.
Controle dos dados
Tais exemplos não são casos
isolados. A cada dia que passa, o governo emite sinais de que pretende controlar
a coleta e a divulgação de informações de qualidade que poderiam colocar em
xeque as ações do próprio governo. É o que está sendo chamado de apagão
estatístico.
Impulsionado pelos espasmos
verbais de Bolsonaro, esse apagão ganhou ares de política de governo em
fevereiro. Durante a cerimônia de posse, no Rio, da nova presidente do IBGE,
Susana Cordeiro Guerra, o ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu que o
instituto venda suas sedes a fim de obter recursos para realizar o Censo 2020.
Além de sinalizar que não haveria verba orçamentária garantida para o
levantamento decenal, Guedes propôs uma mudança metodológica que rompe com a
lógica de tudo que o IBGE havia planejado:
“Vamos
tentar, pelo amor de Deus, simplificar. O censo dos países ricos tem dez
perguntas, o censo brasileiro tem 150, e o censo do Burundi tem 360. Se
perguntar demais você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber.
Sejamos espartanos, façamos as coisas mais compactas e vamos tentar de toda
forma ajudar”, disse ele.
Três meses depois, Guerra
apresentou uma nova versão do questionário do Censo 2020, com cortes drásticos.
Produzido sem debate com o corpo técnico do IBGE, os cortes afetaram tanto o
questionário da amostra (mais extenso, aplicado em apenas 10% dos domicílios)
quanto o questionário básico do Censo.
As mudanças foram alvo de inúmeras
críticas de especialistas da área. A começar pelo timing das alterações
feitas, uma vez que o planejamento de um Censo demográfico demanda pelo menos 3
anos de preparação. É uma operação de grande complexidade, que exige testes e
ajustes do questionário, sem falar no treinamento dos 200 mil técnicos
contratados para recensear os mais de 65 milhões de domicílios brasileiros
dispersos em mais de 5 mil municípios.
Sendo assim, um governo que funcione com um mínimo de racionalidade deveria saber que alterar as regras em cima da hora compromete a excelência do Censo, trazendo prejuízos significativos à produção dos indicadores censitários utilizados na formulação de políticas públicas. O ministro Paulo Guedes, contudo, não parece preocupado com a qualidade do levantamento. Tampouco a presidência do IBGE.
Censo comprometido
Os estragos causados pelo
enxugamento do Censo serão significativos. A desigualdade entre os municípios,
por exemplo, pode ser ampliada, pois os cortes nos questionários prejudicam
projeções e estimativas populacionais. Existe, inclusive, a possibilidade de
distorções nas transferências de verba pública que dependem destes dados, como
os Fundos de Participação dos Municípios e dos Estados.
A saúde dos brasileiros é outra
área bastante afetada pelas mudanças no Censo. A demógrafa Dália Romero,
pesquisadora da Fiocruz, entende que vários levantamentos podem ser
comprometidos pela supressão da pergunta que verificava o local onde residiam os
moradores que migraram. Verificar a origem dos migrantes permite uma compreensão
maior dos fluxos migratórios.
Dália Romero critica também o fato
de que apenas o rendimento da pessoa responsável pelo domicílio será auferido no
Censo 2020. A informação sobre a renda familiar é utilizada, atualmente, para
calibrar as pesquisas amostrais do IBGE, de modo que a falta dela no
questionário básico implicará ou em perda de qualidade nas pesquisas amostrais,
ou ainda na necessidade de ampliar essas amostras, incorrendo em novos custos.
“Na área da saúde, precisamos da
informação da renda de cada integrante do domicilio”, explica a pesquisadora da
Fiocruz. A impossibilidade de saber a renda de cada morador limitará estudos
sobre desigualdade de renda e distribuição geográfica da pobreza. Além disso,
essa informação é importante para balizar pesquisas amostrais do IBGE, como a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).
Há outro agravante, segundo o
professor Paulo Jannuzzi, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE. A
Pnad oferece dados importantes para o acompanhamento de nossa realidade, mas não
chega aos rincões do país onde se encontram as populações mais vulneráveis. O
conhecimento das informações coletadas pelo Censo no nível municipal é
fundamental para a precisão das decisões governamentais acerca da aplicação de
programas e políticas públicas, permitindo o adequado direcionamento dos
recursos orçamentários. Trata-se, avalia Januzzi, de um instrumento essencial
para a construção de estratégias de médio e longo prazo para o enfrentamento da
pobreza.
Dália Romero menciona o exemplo de
um idoso que recebe um valor maior em aposentadoria do que os demais integrantes
do núcleo familiar, sem ser, formalmente, o chefe do domicílio, pois o título
ficaria com seu genro ou seu filho, o homem adulto com a função social de
provedor, por exemplo. “O idoso pode ter ido morar com parentes, porque precisa
de cuidados, e ele contribui no orçamento, dando ajuda econômica, mas você é o
chefe. Isso é um exemplo da dificuldade para definir quem é o responsável
financeiro no domicílio”, avalia.
O exemplo dos idosos é importante
também, segundo ela, para analisar o impacto de outra mudança no Censo, que foi
o corte das perguntas que permitiam, no questionário da amostra, identificar se
os moradores de determinado domicílio recebiam benefícios, como o Benefício de
Prestação Continuada (BPC) e o Bolsa Família.
“A partir da segunda década dos
anos 2000, aumentou muito a cobertura do BPC. Temos trabalhos que mostram que os
domicílios onde há idosos que recebem BPC são menos pobres. E como que a gente
soube disso? Com o Censo. É nossa única fonte”.
Informações incômodas
Outro corte do questionário da
amostra que terá graves consequências é o quesito referente ao valor de aluguel
dos domicílios alugados. O peso do aluguel no orçamento familiar é uma
informação riquíssima, usada para os municípios estimarem o déficit
habitacional, explica Jannuzzi. É uma perda que não pode ser compensada por
pesquisas amostrais, pois só o Censo poderia produzir os resultados para cada
município e por cada bairro das grandes cidades, informações absolutamente
fundamentais para o desenho das políticas habitacionais.
Para o professor do IBGE, não se
trata somente de uma questão técnica. "Ao retirar informação de qualidade do
censo demográfico, o governo compromete um conjunto de políticas públicas".
Portanto, é essencial obter informações sobre o segmento da sociedade que dedica
uma parcela significativa da sua renda para o pagamento do aluguel. Sem essa
pergunta, simplesmente não será possível fazer planejamento habitacional.
Ele lembra também outra pergunta
fundamental retirada do questionário da amostra: a que permitiria identificar,
no caso dos moradores que frequentam creche, se a rede de ensino é privada ou
pública. Este quesito é importante para caracterizar o estudante e a rede de
ensino que ele frequenta, além de identificar os locais onde há necessidade de
ampliar a rede pública. "A grande demanda dos municípios hoje, na educação, é a
oferta de creche. Até para emancipar a mãe do Bolsa Família, ela precisa colocar
a criança na creche para poder voltar a trabalhar”, afirma. E acrescenta: “É
verdade que o censo pergunta se a criança está em creche, mas não identifica a
modalidade, se é pública ou privada, uma informação importante para ver que
município fez um esforço maior neste sentido".
"Quando se esperaria que a
discussão pública sobre o Censo 2020 fosse tratar de quais novos temas deveriam
ser levantados para atender as agendas de Políticas Públicas do século XXI
inicia-se um processo de retirada de quesitos, retrocedendo o escopo
investigativo para algumas décadas atrás", lamenta Jannuzzi.
A demissão de Ricardo Galvão do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), em agosto, após a divulgação de informações
sobre a ampliação do desmatamento, trouxe o receio de um apagão
ambiental de proporções catastróficas. Antes de sua saída,
Galvão disse que não iria tomar as agressões de Bolsonaro pelo
lado pessoal por achar que havia um esquema para desacreditar o
trabalho do Inpe.
Órgão desvalorizado
|
Municípios à deriva
Apesar das numerosas críticas à
mutilação do Censo, a direção do IBGE segue defendendo a ideia de que é possível
buscar os dados suprimidos em outras fontes. Duas soluções foram apresentadas.
Em primeiro lugar, o IBGE propõe "a potencialização das pesquisas amostrais"
como a Pnad.
A segunda alternativa estaria na investigação, pelo instituto, do conjunto de registros administrativos disponíveis, notadamente os dados referentes a nascimentos, casamentos, óbitos, além de Anuários Estatísticos, como o da Dataprev, que hospeda bancos de dados sociais do governo federal oriundos da concessão e pagamento de benefícios. Outra fonte seria os Relatórios Anuais de Informação Social (Rais), de responsabilidade do Ministério da Economia, que apresentam um registro contínuo do mercado formal de trabalho.
Luanda Botelho, coordenadora da associação do IBGE, explica que o instituto estuda essas alternativas há muitos anos, mas as avaliações técnicas indicam que elas não têm capacidade de substituir, em curto prazo, as informações colhidas pelo Censo.
"É preciso colocar em perspectiva
o federalismo brasileiro com três níveis de governo e uma série de políticas
executadas em nível municipal. E a Pnad só recolhe informações de estados e
capitais. Não tem condições, no momento, de fornecer o dado municipal, que é
onde está o registro das grandes desigualdades normalmente captadas pelo Censo”
questiona.
A seu ver, seria preciso um grande
investimento nas pesquisas amostrais para compensar as lacunas deixadas pelo
enxugamento do Censo. Ela cita o exemplo do Australian Bureau of Statistics, que
mantém uma produção estatística voltada exclusivamente para a pessoa com
deficiência. A principal pesquisa amostral neste sentido é a pesquisa que traça
o perfil demográfico e socioeconômico não só dos australianos com deficiência,
mas também dos idosos, das pessoas com problema de saúde permanente e dos
moradores responsáveis pelos cuidados dos três grupos avaliados.
No dia em que o Brasil chegar nesse estágio, poderá ter um censo mais enxuto. Por ora, defende Jannuzzi, é preciso resistir ao desmonte das políticas públicas, o que implica em resistir também ao empobrecimento temático do Censo 2020.
Há sinais, na Câmara dos
Deputados, de avanço dessa resistência. Durante a discussão da Lei de Diretrizes
Orçamentárias na Câmara, em agosto, o Psol conseguiu aprovar uma emenda do
deputado fluminense Marcelo Freixo que garante os recursos necessários para a
realização do Censo. Freixo utilizou como parâmetro a informação dos técnicos do
IBGE, que afirmam serem necessários R$ 3,2 bilhões para a realização do Censo
2020. O governo, porém, pretende destinar somente R$ 1,4 bilhões.
Para a demógrafa Dalia Romero, o que está em jogo é o direito à informação. É
preciso ter identidade com essa luta, afirma, e valorizar o trabalho dos
pesquisadores. “As pessoas se mobilizam quando se fecha um hospital, mas ainda é
difícil vê-las protestando na rua pelo direito à informação. Ter consciência
sobre isso faz toda a diferença. A forma mais comum de apagar a luta é apagar a
informação".
A instabilidade em alguns setores do governo vem
dificultando a execução de um plano estratégico mais robusto. O
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), que completou 82 anos em 2019, é uma das
autarquias que mais se ressentem disso. “Estamos no quarto
presidente só este ano e, com isso, trabalhamos apenas com o dia
a dia, não há planejamento estratégico”, afirma o professor João
Horta Neto, pesquisador da Diretoria de Avaliação da Educação
Básica do Inep.
|
O CRESCIMENTO DA POBREZA E A AUSÊNCIA DE DADOS
FRANCISCO MENEZES
Existe um consenso na gestão pública de
que o acompanhamento sistemático e consistente de dados a respeito das
diferentes áreas que lhes são objetos é mecanismo indispensável para a
avaliação e a melhor definição sobre as políticas aplicadas. Ou existia
esse consenso. Porque nesse quesito o atual governo também inova. Ele
não gosta desse tipo de informação. E é o que demonstra, de forma
explícita, até aqui.
Isso vem ocorrendo em diversas áreas, entre elas a social. Ao mesmo
tempo em que aparecem evidências de que a pobreza e a desigualdade
voltaram a crescer no Brasil, os dados e indicadores sociais vão se
tornando mais raros, ou são divulgados com grande atraso, correndo o
risco de já não retratarem a realidade mais recente. Sobre esse âmbito o
governo conta com a excelência de institutos como o IBGE. No entanto,
não tira partido daquilo que dispõe. Já foram algumas vezes que o
presidente da República desqualificou os dados sobre emprego, que o IBGE
apura pela Pnad-Contínua e divulga trimestralmente. Desqualifica porque
não gosta dos resultados. O ministro da Economia seguiu o mesmo caminho,
ao tentar justificar os cortes no Censo 2020, argumentando que “se
perguntar demais vai descobrir coisas que não quer saber”.
Mais do que nunca, o Brasil precisa contar com a competência de seus
institutos e a presteza na disponibilidade de dados e indicadores para o
monitoramento da pobreza e da desigualdade. Até o ano passado, o módulo
de Rendimento de Todas as Fontes da Pnad Contínua era divulgado em
abril, trazendo os dados sobre rendimentos do ano anterior. Em 2019 só
viemos a conhecer os resultados de 2018 agora, em outubro. O que se viu
não foi bom, mas era necessário saber. Cresceu a desigualdade, os mais
ricos ficaram mais ricos e os mais pobres tornaram-se ainda mais pobres.
Segundo os dados agora divulgados, o contingente que, em julho de 2018,
tinha renda per capita igual ou inferior a R$ 106,14 por mês, não cessou
de crescer. Se em 2014 eram 3,5%, em 2018 já chegaram a 5,8% da
população. Em outras palavras, trata-se de uma proporção cada vez maior
de nossa população em situação de miséria. Uma informação dura, mas
essencial para que se repense as políticas que vem sendo aplicadas.
O crescimento da pobreza e da desigualdade em 2018 não foi um acidente
de percurso. Ele já ocorre desde 2015, a partir de quando foram tomadas
medidas que se autointitularam de austeridade, mas que vêm resultando em
um altíssimo preço para a população em maior vulnerabilidade. O déficit
fiscal não dá mostras de se resolver, apesar da draconiana emenda
constitucional conhecida como do corte dos gastos. Foi prometida a
retomada do emprego, com a reforma trabalhista, mas isso não ocorreu e
aprofundou-se a precarização do trabalho. E as reformas da Previdência e
tributária, em curso no Congresso Nacional, prometem o equilíbrio fiscal
e o desenvolvimento, escondendo quem sai ganhando e quem perde com elas.
Os cortes orçamentários recaem em todas as áreas. Na área social
representam o desmonte de vários programas que alcançaram reconhecimento
internacional, como aqueles relacionados com a segurança alimentar e
nutricional, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos da
Agricultura Familiar e o Programa de Cisternas do Semiárido. A ameaça do
Brasil voltar ao Mapa da Fome vai se concretizando, sem que se veja a
tomada de medidas que evitem esse retrocesso. Os dados recém divulgados
pelo IBGE revelaram a redução de famílias que recebem o repasse do
Programa Bolsa Família, quando em um quadro de crescimento da extrema
pobreza o que deveria ocorrer seria exatamente o contrário,
considerando-se, inclusive, o baixo custo do programa. Enfim, de uma
rede de proteção social que vinha se constituindo, assiste-se agora a
seu desmanche.
Pesquisas que informam sobre esse preocupante quadro são imprescindíveis
para que se amplie o debate acerca dos rumos que estão sendo tomados. Na
leitura de seus resultados é um engano justificá-los como uma
consequência inevitável da crise, como frequentemente vem sendo
mencionado. É preciso que também se discutam os efeitos das escolhas
políticas para seu enfrentamento.
(*) FRANCISCO MENEZES é economista, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e consultor de ActionAid Brasi
COAF NO BC GANHA AUTONOMIA, MAS PERDE
FORÇA
MEDIDA PROVISÓRIA 893 RECEBEU SEVERAS CRÍTICAS NO
CONGRESSO NACIONAL POR REPRESENTAR UM RETROCESSO NO COMBATE À CORRUPÇÃO.
Alexandre Medeiros
Apenas nos oito primeiros meses deste
ano, sob o governo Jair Bolsonaro, o Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf) passou por mais mudanças do que ao longo de seus 20
anos de história. Criado em 1998, com a missão primordial de prevenir e
combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo, o órgão
sofreu seu mais duro revés com a Medida Provisória 893, publicada em 20
de agosto. Não só perdeu o nome – foi rebatizado como Unidade de
Inteligência Financeira (UIF) – como deixou o Ministério da Economia e
passou a ser subordinado ao Banco Central, entre outras alterações.
Aliada a outras tentativas de ingerência do governo Bolsonaro em
instituições como a Polícia Federal e a Receita Federal, a MP 893,
segundo críticas de especialistas e de parlamentares da esquerda à
direita, representa um retrocesso no combate à corrupção no Brasil.
Constituída para avaliar a MP 893 – que já está em vigor, pois tem força
de lei –, uma Comissão Mista do Congresso Nacional, presidida pelo
senador José Serra (PSDB-SP), foi palco nos últimos dois meses de
severas críticas às mudanças. Uma das mais contundentes partiu do
economista Maílson da Nóbrega, ministro da Fazenda (1988-1990) no
governo José Sarney: “Eu não discuto as razões políticas pelas quais se
fez a transferência do Coaf para o Banco Central. Mas, do ponto de vista
administrativo, é uma aberração. Não tem paralelo na história do país,
talvez não tenha no mundo: órgãos de mesmo nível hierárquico, um
subordinado ao outro. A vinculação do Coaf ao Banco Central significa
uma redução da importância do Coaf”, avaliou Maílson, em audiência
pública da Comissão Mista em 25 de setembro.
Na mesma audiência, o presidente do Sinal, Paulo Lino, disse que o ideal
seria recusar integralmente a MP 893: “Ela é inconveniente, malfeita e
trará problemas nos próximos anos”. Para o dirigente, a vinculação do
Coaf ao Banco Central, como pontuou o ex-ministro Maílson da Nóbrega, é
descabida. “O Sinal entende que o Coaf deveria continuar subordinado ao
Ministério da Economia. Se o governo quiser vincular o órgão à estrutura
de outro ministério, como o da Justiça, como já fez, nós também
discordamos, mas pelo menos há uma lógica. Mas dentro do Banco Central é
inconcebível. O Banco Central participa do Coaf avaliando movimentações
financeiras na esfera bancária, onde é especialista. Mas o banco não
lida com movimentação fiscal, securitária, de valores mobiliários e
muito menos com terrorismo, com controle de armamento, não tem know-how
para isso”.
Incerteza gera paralisia
Órgão até então pouco conhecido pela população, o Coaf ganhou evidência
em dezembro de 2018, quando o Ministério Público Federal no Rio de
Janeiro abriu investigação contra o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ),
filho mais velho de Jair Bolsonaro. A investigação tomou como base a
operação “Furna da Onça”, deflagrada pela Polícia Federal em 8 de
dezembro, e que tinha entre suas principais bases um relatório do Coaf
sobre movimentações financeiras suspeitas de assessores parlamentares na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Entre eles, Fabrício Queiroz,
policial militar aposentado que trabalhou como motorista e assessor no
gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro até outubro de 2018
– quando foi exonerado. O Coaf constatou movimentação atípica de R$ 1,2
milhão na conta bancária de Queiroz entre janeiro de 2016 e janeiro de
2017. A principal suspeita é a prática da chamada “rachadinha”, quando o
servidor repassa parte ou totalidade de seu salário para o político que
o contratou.
Em termos republicanos, como órgão de Estado que sempre foi, o Coaf fez
o dever de casa. Ao constatar indícios de movimentações suspeitas,
encaminhou-os aos órgãos encarregados de investigá-los – a Polícia
Federal e o Ministério Público. A partir da operação “Furna da Onça”, o
MP no Rio de Janeiro passou a apurar o chamado “Caso Queiroz”, que
ganhou repercussão nacional ao propagar a pergunta mais comentada nos
últimos meses, diante do sumiço do ex-assessor de Flávio Bolsonaro:
“Onde está o Queiroz?”.
O Coaf ganhou ainda mais evidência em julho, quando o presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, em decisão monocrática,
acatou pedido da defesa de Flávio Bolsonaro e suspendeu todas
investigações que tivessem como base o compartilhamento de dados
oriundos de órgãos públicos – como o Coaf e a Receita Federal – com o
Ministério Público sem autorização judicial prévia. Centenas de
investigações em curso em todo o Brasil foram interrompidas. Em agosto,
pouco mais de um mês depois da decisão de Toffoli, o presidente Jair
Bolsonaro assinou a MP 893.
Com a fama, veio o ocaso. Segundo matérias dos jornais O Globo e Folha
de S. Paulo, ambas de 19 de setembro, a produção dos Relatórios de
Inteligência Financeira (RIFs) pelo Coaf despencou mais de 80% desde a
decisão de Toffoli. Fato agravado pela MP 893 e por outra decisão do
STF, esta do ministro Gilmar Mendes, mais uma vez atendendo a pedido da
defesa do filho mais velho de Jair Bolsonaro, de suspender as
investigações do “caso Queiroz” pelo Ministério Público no Rio de
Janeiro, em 27 de setembro. A alegação era a de que os procuradores
haviam prosseguido com as investigações mesmo após a decisão de Dias
Toffoli, em julho.
Para Kleber Cabral, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores
Fiscais da Receita federal (Sindifisco), todas essas mudanças
interferiram no bom trabalho que o Coaf vinha desenvolvendo: “O Coaf
havia passado por um processo de crescimento de seu quadro de
servidores, investimentos, uma clara demonstração de valorização da
atividade de inteligência financeira no país. As mudanças ocorridas
desde o retorno do órgão para o Ministério da Economia e, depois, com as
alterações trazidas pela MP 893, certamente afetaram negativamente os
trabalhos em curso”, diz Kleber, referindo-se à breve passagem do Coaf
pelo Ministério da Justiça, no início do governo Bolsonaro.
Especialista em combate à corrupção e sonegação fiscal, Kleber Cabral é
crítico feroz da MP 893: “As mudanças na estrutura do Coaf representam
um retrocesso no combate aos crimes de lavagem de dinheiro, corrupção,
sonegação e outros ilícitos financeiros. Houve uma solução política com
objetivo de acalmar os ânimos de personagens atingidos pela integração
entre Coaf, Receita Federal e órgãos de persecução penal. A nova UIF
poderia funcionar a contento no formato anterior, ligada ao ministro da
Economia, ou ao ministro da Justiça, mas a nova estrutura, dentro do
Banco Central, tende a dificultar os trabalhos”, sustenta.
“O Banco Central do Brasil goza de uma reputação, nacional e
internacional, de excelência na qualidade dos serviços prestados e de
idoneidade em suas atividades típicas de Estado, graças ao esmero e
dedicação dos servidores que, de geração em geração, ao longo dos seus
mais de 50 anos de existência, vêm construindo e fortalecendo os pilares
em que ele se sustenta. É na segurança deste BC que o governo quer
vincular a UIF, que se não for adequadamente construída pode vir a
custar a credibilidade da instituição até mesmo em suas missões
fundamentais, que são a de manter a estabilidade da moeda e a higidez do
sistema financeiro”, afirmou o presidente do Sinal, Paulo Lino.
A
falta de clareza quanto ao orçamento da UIF foi outra falha observada na
MP 893 por Lino. “O texto não explicita qual será o orçamento do Coaf,
de onde virão seus recursos. O Banco Central já está com seu orçamento
contingenciado há algum tempo, o que impediu até de se fazer este ano a
adequada manutenção de seus prédios. Ele vai poder assumir mais esse
encargo? Se a fiscalização do Banco Central hoje sofre restrições em
função da falta de orçamento para viagens a serviço e diárias, será que
o Coaf não sofrerá isso também?”, indagou Paulo Lino.
Críticas unem especialistas
A edição da MP 893 foi capaz de produzir um fato raro na vida nacional:
a união de especialistas das mais diversas áreas e tendências e de
parlamentares de campos opostos na política nas críticas a pontos
obscuros da medida. Na audiência pública da Comissão Mista de 1º de
outubro, o economista Afonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco
Central no período do regime militar (1983-1985), fez coro às críticas
de Maílson da Nóbrega, de quem divergia publicamente na condução da
política econômica durante o governo José Sarney. Assim como Maílson,
Pastore condenou a vinculação do Coaf ao Banco Central: “Se eu fosse
hoje o presidente do Banco Central, não ia aceitar a entrada do Coaf.
Uma coisa é combater lavagem de dinheiro, outra coisa é fazer política
monetária. Estão misturando coisas incompatíveis”.
Para Pastore, tanto o Coaf quanto o Banco Central têm que ser
fortalecidos em suas funções, “e não misturados”. “Não tem que fazer uma
omelete com o Coaf e o Banco Central, é um erro enorme, gigantesco”,
acentuou o economista. Na mesma audiência, o advogado Pierpaolo Cruz
Bottini destacou que o relatório final da CPI dos Correios, de 2005,
defendia mais autonomia ao Coaf e recomendava a sua transformação em uma
Agência Nacional de Inteligência Financeira: “Na contramão dessa defesa
da autonomia do órgão, a vinculação do Coaf ao Banco Central é um
retrocesso institucional e vai trazer insegurança jurídica”, advertiu o
advogado.
Outro ponto duramente criticado da MP 893 é a possibilidade de indicação
de pessoas de fora do Serviço Público para compor o Conselho
Deliberativo do órgão, até então formado apenas por servidores de
carreira do Estado. Pelo menos nove emendas parlamentares exigem a
retirada dessa alteração do texto.
O texto original determina que o presidente do Banco Central, Roberto
Campos Neto, possa escolher para integrar o Conselho Deliberativo da UIF
“cidadãos brasileiros com reputação ilibada e reconhecidos conhecimentos
na temática”. Em nota técnica assinada pelas subprocuradoras-gerais da
República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen e Maria Iraneide Facchini,
divulgada em 8 de outubro, o Ministério Público Federal alerta: “A MP
sugere que o novo órgão seja composto por indicações políticas, sujeito,
portanto, à indesejável interferência externa por poder ser integrado
por pessoas estranhas aos quadros da Administração Pública, em
descompasso com a natureza técnica da UIF que sucede ao Coaf”.
Na audiência pública da Comissão Mista de 24 de setembro, o
procurador-geral do Banco Central, Cristiano Cozer, tentou defender a
mudança, alegando que as pessoas de fora seriam técnicos especializados
em Informática ou Tecnologia da Informação. Mas foi prontamente rebatido
pela subprocuradora-geral da República, Luiza Fonseca Frischeisen: “Isso
não está escrito no texto da Medida Provisória”.
Luiza
lembrou ainda que o Coaf segue as resoluções do Grupo de Ação Financeira
Internacional contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento ao
Terrorismo (Gafi), que estabelece diretrizes para todas as unidades de
inteligência financeira dos países que integram o órgão, como o Brasil.
Qualquer mudança que interfira na autonomia dessas unidades, como rege o
Gafi, pode trazer sérias consequências, entre elas a redução da nota do
Brasil pelas agências internacionais de análise de risco. “Não atender
às resoluções do Gafi afasta os investimentos do país. A recomendação 29
do Gafi diz para que servem os relatórios de inteligência financeira,
que têm de ser compartilhados com as instituições que devem investigar e
fazer a persecução penal", explicou. O Brasil passará por uma nova
avaliação do Gafi em 2020.
Parlamentares à esquerda, como o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), à
direita, como o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), se uniram nas críticas
ao texto original. Para Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre (MBL),
que apoiou a candidatura de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, tanto
a possibilidade de indicações de pessoas de fora do Serviço Público
quanto a vinculação do Coaf ao Banco Central são injustificáveis. “Não
existe explicação racional, sem motivos ocultos, que justifique a vinda
dessa MP. Nem que justifique a possibilidade de indicar pessoas de fora
ou a transferência do Coaf para o Banco Central”, disse Kim.
O acúmulo de críticas à MP 893 e a intensa interlocução com as partes
envolvidas - governo, parlamentares e entidades sindicais - parece ter
sensibilizado o seu relator na Comissão Mista, deputado Reinhold
Stephanes Júnior (PSD/PR), que resolveu acatar algumas sugestões. Ele
apresentou, em 23 de outubro, um novo texto para a matéria onde, entre
outros pontos, resgata o nome Coaf e transforma o Conselho Deliberativo
em Plenário, que passa a ser composto por servidores públicos
pertencentes às carreiras que já compunham o Coaf, como o próprio Banco
Central, Receita Federal, Comissão de Valores Mobiliários, Polícia
Federal, Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Superintendência de
Seguros Privados, Controladoria Geral da União, Superintendência
Nacional de Previdência Complementar, Procuradoria Geral da Fazenda
nacional e dos Ministérios das Relações Exteriores e da Justiça e
Segurança Pública.
Após passar pela Comissão Mista, a MP 893 ainda terá que ser apreciada
pelos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
REFORMAS QUEREM BARATEAR PREÇO DA MÃO DE
OBRA
Furar a bolha do mercado financeiro,
onde trabalhou como analista por vários anos, e partir para conhecer uma
realidade social bem diferente da que estava habituado foi um longo e
difícil processo que mudou completamente a vida do economista e
ex-banqueiro Eduardo Moreira. “Eu comecei a nutrir um Eduardo lado B.
Que era um Eduardo de contato com gente, de ouvir histórias, de viajar,
palestrar. Foi o primeiro furo que eu fiz na bolha”. Perdeu a amizade de
muita gente, foi duramente criticado pelos economistas que gravitam na
órbita dos bancos, mas ganhou novos amigos e parceiros. Hoje,
certamente, é um dos mais ativos economistas de oposição ao governo, com
críticas às reformas e ao desmonte do Estado brasileiro.
A Por Sinal conversou com Eduardo no seu escritório em São Paulo, local
de passagem do economista, sempre viajando pelo Brasil profundo para dar
palestras ou para conhecer de perto como vive a população mais pobre do
país. Perguntado sobre as reformas da Previdência, trabalhista e
administrativa, o economista disse não ter nenhuma dúvida de que, no
fundo, todas elas foram feitas para reduzir o custo da mão de obra.
Flavia Cavalcanti
• Para esta edição estamos produzindo matérias sobre o impacto da reforma da previdência, da reforma trabalhista e da futura reforma administrativa. E o que vemos, depois de várias conversas, é que, em todas elas, ao contrario do discurso do governo, os mais pobres são os grandes prejudicados. O Estado de bem-estar social vem sendo desmontado de forma muito rápida, e isso é perigoso.
Gosto de ver as coisas de uma forma mais
simples, para poder, primeiro, dar sentido a elas. Vejo todas essas
reformas que estão acontecendo como reformas que tornam a mão de obra
mais barata. Quando você faz um reforma trabalhista, está diminuindo a
possibilidade de os trabalhadores se juntarem e negociarem em conjunto,
e ampliando as formas como eles devem trabalhar. Por exemplo, ampliando
a lei que permite o trabalho intermitente, o trabalho em horários
diversos, em lugares diversos, a terceirização. Quando existe mais
oferta de algum produto, com uma demanda relativamente constante, o
preço desse produto cai. A reforma trabalhista nada mais é do que uma
reforma para fazer o preço da mão de obra cair.
No caso da reforma da Previdência, a mesma coisa. Você está fazendo as
pessoas trabalharem até o fim da vida porque a aposentadoria que vão
receber não é suficientemente poderosa para bancar os seus custos
mínimos de vida ou porque, simplesmente, eles não vão atender os
requisitos para ter o tempo mínimo necessário para se aposentar. Logo,
estão fazendo com que as pessoas trabalhem até o fim da vida delas. São
mais pessoas que terão que trabalhar, mais oferta e, portanto, o preço
cai.
Ou seja, todas essas reformas vêm com um sentido de fazer com que o
preço da mão de obra, que para o grande empresário é mais uma das
variáveis que ele tem que baixar, caia.
• E no caso da reforma administrativa?
Quando se faz uma reforma do Estado, como a reforma administrativa, e
tenta diminuir o tamanho do Estado, o que é que está se fazendo? Nesse
caso, o impacto da diminuição da mão de obra não é direto, é indireto.
Porque está se tirando um monte de gente que trabalha em condições que o
Estado pode controlar e jogando essas pessoas no mercado, aumentando a
oferta. E isso é relevante! São 12 milhões de servidores na ativa,
somando civis, funcionários de estatais, militares, nas esferas
municipal, estadual e federal. Então, quando você diminui o tamanho do
Estado, aumenta, também, a oferta de pessoas na iniciativa privada,
reduzindo, com isso, o custo da mão de obra.
Mas, na reforma administrativa existe outro interesse, que é o seguinte:
o Estado é um redistribuidor de riqueza. O Estado não é uma pessoa, como
alguns pensam, no sentido de que “o Estado gasta muito”, “o Estado
economiza”. O Estado não gasta nem economiza. Ele escolhe de quem vai
tirar, quanto tira, e para quem vai dar. E tem uma coisa a mais, que é
importantíssima. O legado que fica pelo caminho. Porque ele pode dar
dinheiro para as pessoas simplesmente, ou pode dar dinheiro
contratando-as para fazerem algum tipo de serviço, ou produzindo alguma
coisa.
• Obras que ficam, por exemplo.
Isso! O que fica é o legado que serve
para alavancar a próxima fase do crescimento. O que é que acontece?
Quando você tem um Estado menor, essa redistribuição passa para a mão da
iniciativa privada. E a iniciativa privada é dez vezes, cem vezes mais
acumuladora do que o Estado.
As pessoas falam que o Estado paga muito a algumas pessoas e paga pouco
a outras. Realmente, existem coisas que podem melhorar. Injustiças,
desigualdade nos salários. Por exemplo, entre um juiz e um enfermeiro do
SUS. Agora, olha as desigualdades que existem no setor privado. Acabou
de sair a Forbes com as 200 pessoas mais ricas.
• Em alguma das suas palestras, você
falou do tamanho dessa desigualdade, comparando o que o Estado gasta com
os 12 milhões de servidores e o que os 200 mais ricos do país ganham.
Fale desses dados, são impressionantes.
Segundo a Forbes, as 200 pessoas mais
ricas do Brasil ganharam, no ano passado, R$ 230 bilhões. E elas
acumulam R$ 1 trilhão e 300 bilhões de reais. Isso só a parte que está
declarada no Brasil.. No caso do setor público, 12 milhões de servidores
da ativa receberam, no ano passado, pouco mais de R$ 700 bilhões. Ou
seja, são 60 mil vezes mais pessoas recebendo três vezes mais dinheiro!
E você diz que o Estado é o gerador de desigualdade? Que o Estado é que
faz acumular e não a iniciativa privada?
O que temos que entender é o seguinte. Se essas pessoas, as mais ricas
do país, aumentaram seu patrimônio, de 2012 até para cá, de R$ 300
bilhões para R$1 trilhão e 300, e o PIB brasileiro real caiu nesse mesmo
período, esse dinheiro deve ter vindo de algum lugar. Porque dinheiro
não aparece em árvore, não aparece no ar. De quem é que veio? Veio da
classe média e da classe pobre brasileira, que empobreceu demais ao
longo dos últimos sete anos, no Brasil. Essas reformas todas tentam
consolidar o processo de precarização da mão de obra, que está
completamente na mão, em termos de negociação de preços, das pessoas que
têm o poder econômico no Brasil.
• Qual é a lógica disso? Quando se
diminui o custo de mão de obra, diminui a demanda. E o que gera
crescimento real é a demanda. A quem interessa essa desigualdade? A
própria China, que é um país comunista, já rompeu essa lógica há muito
tempo.
Há dois motivos principais, na minha
visão. O primeiro é a cobrança dos resultados no curto prazo dos
acionistas. Hoje em dia, as pessoas que tocam as empresas são
remuneradas com stock options, com phantom stocks, com bônus, de acordo
com os resultados que eles entregam no ano, e, algumas vezes, até nos
resultados semestrais.
Quando a remuneração dos executivos da empresa está completamente
atrelada aos resultados de curtíssimo prazo, você não pensa mais em
planejamento. Não pensa no que isso está gerando de impacto estrutural,
sistêmico, no longo prazo. Não pensa, também, que vai ficar sem
consumidor lá na frente. Só pensa no que vai garantir o seu próximo
bônus. Até porque, você não sabe se daqui a dois anos vai continuar como
CEO daquela empresa, com direito a esse modelo de remuneração. O curto
prazo, hoje em dia, é absoluto e soberano nas empresas, por causa da
remuneração dos seus executivos.
• E o segundo motivo?
O segundo grande motivo é o seguinte. Temos um pensamento falacioso que
imagina que as pessoas estão querendo maximizar as relações de riqueza e
de dinheiro. Não é verdade. Não vemos os donos das principais empresas
do Brasil, dos principais conglomerados, dos principais bancos, querendo
otimizar a relação de riqueza. Eles estão querendo otimizar a relação de
poder. Então, muitas vezes, num país extremamente desigual como o
Brasil, você entende que não está gerando o máximo de riqueza que
poderia para o país, mas, com certeza, está exercendo o máximo de poder.
Isto porque, na medida em que se reduz a desigualdade, você impulsiona o
crescimento e diminui a concentração de poder. Porque menos desigualdade
é menos concentração de poder.
Essas pessoas, hoje em dia, têm o poder de direcionar o crescimento para
aonde quiserem. E vão sempre direcioná-lo para aquele caminho com menos
atrito para eles, em todos os sentidos. Menos atrito para aprovar, por
exemplo, uma obra ambiental que tem um impacto ambiental enorme. Ou para
aprovar um novo modelo de tributação, aprovar incentivos. Isso é uma
questão de poder. E esse poder, eles têm hoje.
Então quando se pega o exemplo da China, o que é que ela tem de especial
hoje? Ela tem o Estado induzindo crescimento. Então o Estado aponta:
“Olha, nós vamos crescer para lá, naquela direção, e são essas coisas
que o país precisa para poder ter crescimento grande”. E o mercado é o
responsável pela inovação.
A competição que se gera é o risco tomado para fazer com que as coisas
acelerem, mas acelerem na direção correta. Tem uma frase, em inglês, que
diz: “Não adianta remar mais rápido se o barco está apontado na direção
errada”. O que o Estado chinês faz é apontar o barco para a direção
rápida. E o mercado faz o pessoal remar mais rápido.
• Mas, e no Brasil, em que direção
anda o barco? Como funciona?
No Brasil, temos o Estado apontando o
barco para a direção errada. Porque ele é representado hoje em dia, sem
intermediários, por banqueiros e donos de empresas. São os donos do
país. Antigamente, eles tinham intermediários, os políticos. Hoje em
dia, nem os políticos mais eles têm. Se você for olhar quem está
ocupando os cargos de ministros, presidentes de bancos públicos, vai ver
que são todos ex-banqueiros. Às vezes até banqueiros. E para aonde eles
apontam o barco? Para onde podem maximizar os ganhos de curto prazo das
suas empresas. Que vão gerar bônus altos, stock options altos. Por isso
a necessidade de ter o Estado induzindo.
• Mas esse modelo dos bancos no centro
do poder não é brasileiro.
Isso
começa na década de 1980. Antes disso, o pensamento neoliberal ganhou
muita importância no mundo. Principalmente quando os banqueiros suecos
financiam o Prêmio Nobel, fazem lobby para terem o Prêmio Nobel de
Economia, e esses prêmios são entregues aos pensadores neoliberais.
Depois vem o teste no Chile, do modelo funcionando na ditadura de
Pinochet, e quando eles acertam os ponteiros lá, vem a implementação
disso com o Reagan e Tatcher ao mesmo tempo, ali no começo dos anos
1980.
A Academia é comprada com esse novo ideal, os think tanks que se formam
são quase todos neoliberais. É quando começa a ter a hegemonia do
pensamento neoliberal, tanto na academia, como nas principais potências
capitalistas do mundo. É quando esse pensamento começa a virar verdade.
E começa a virar verdade que o Estado atrapalha e que a carga tributária
é muito alta.
A carga tributária brasileira é 32% do PIB. O que é que quer dizer isso?
Porque as pessoas falam que “a gente perde 32% do PIB em carga
tributária”. Carga tributária só quer dizer o seguinte: do que
produzimos de riqueza do país, pegamos um terço e redistribuímos. É só
isso. Não desaparece nenhum centavo. Um terço do que produzimos de
riqueza no país, o governo pega, e fala assim: “Isso aqui eu vou
redistribuir entre as pessoas”.
• Falam tanto da carta tributária
alta, mas quem paga mais são os pobres, via consumo.
Sim, quem paga impostos sobre consumo são
os pobres, quem recebe os impostos, através dos juros, são os ricos!
Vocês gostaram daquele dado de desigualdade dos 12 milhões de
servidores, não? Tem um pior ainda. Quando as pessoas dizem que a carga
tributária no Brasil é alta e que o maior gasto é o da Previdência, eu
respondo que a Previdência atende 30 milhões de pessoas. Ou seja, um bom
pedaço do dinheiro que você está pegando no Brasil, através da carga
tributária, você está redistribuindo, apesar de que essa redistribuição
poderia ser muito melhor, muito mais justa. Mas, pelo menos, você tem 30
milhões de assistidos. Se você somar os 12 milhões de ativos, você tem
quase 50 milhões de pessoas que recebem de volta esses impostos!
Então não é aqui que está acontecendo a concentração de renda no país.
Não é daqui que surge a desigualdade. Alguns dizem que o Estado é o
maior gerador de desigualdade no Brasil. Não é. Ele arrecada os impostos
e distribui para, pelo menos, 50 milhões de pessoas. E deixando obras
como legado.
No caso de uma empresa de telefonia que é privatizada, o que acontece?
Aquela empresa de telefonia, como era do Estado, agia também como
redistribuidora de riqueza. Ela cobra do consumidor a tarifa de
telefonia, pega esse dinheiro e dá para as pessoas que trabalham para a
empresa. E deixa um legado, que é um monte de linhas telefônicas. E
quando é privatizada? Passa a ser mais um instrumento concentrador de
riqueza, que pega o dinheiro dos consumidores e deixa quase todo nas
mãos de meia dúzia de donos.
Qual deve ser a luta? Algumas perguntas são legítimas de se fazer. Esse
negócio é moderno o suficiente? O processo que está sendo utilizado é o
melhor? Estamos escolhendo bem os funcionários? Mas não faz sentido
dizer que a privatização melhora a redistribuição de renda. Você tira
essa empresa que é do Estado, ou seja, que pega dinheiro das pessoas e
devolve para elas mesmas, e põe no lugar uma empresa privada que pega
das pessoas e fica com um dono só. Isso não tem lógica matemática!
• Você falou na direção do barco, e
que o Estado tem que apontar. No entanto, para o governo apontar a
direção do barco, ele precisa investir nessa direção, precisa de
dinheiro. Segundo consta, estamos com uma crise fiscal enorme, o governo
diminuiu mais de 80% dos gastos obrigatórios e não tem margem para
apontar a direção do barco. Qual a solução para isso?
Vivemos a execução de um plano que foi
muito bem arquitetado e que começa com a emenda constitucional 95, o
Teto de Gastos. O país, qualquer país, tem que gerar nova riqueza,
porque para viver se consome riqueza. E, para gerar riqueza, temos que
investir. Nenhuma riqueza aparece do nada. Você faz um investimento e
esse investimento implica num risco e o risco, quando é transpassado,
gera um retorno. Esse é o processo econômico: investimento, risco e
retorno. E aí, o governo chega e fala que o poder público, durante 20
anos, não pode mais investir. Porque a emenda constitucional, na
prática, é não poder investir. Não é um teto de gastos, é um teto de
investimentos. Se fosse teto de gastos, incluía juros também.
Uma coisa que eu acho absolutamente absurda é como os juros são tratados
no Brasil. Tem algum lugar, na Constituição Federal, que diz que a
despesa com juros é mais importante que qualquer outra despesa? Não
existe. Mas, na prática, temos superávit primário, a gente já faz a
conta dizendo receita menos despesa, excluindo os juros. Em juros, eles
não mexem. Isso é sagrado! Superávit primário é isso. Teto dos gastos é
o limite dos gastos. Menos com os juros.
• A taxa Selic está baixa, mas lá na
ponta os juros estão altíssimos, 200, 300%. Por que isso?
Para não deixar que as pessoas que produzem a riqueza, no Brasil, passem
a ter acesso à máquina, ao capital. Você é um cara que produz camisa e
faz tudo na empresa -- opera a máquina de produzir camisa, monta, tira a
camisa, corta a camisa. Só que você não tem dinheiro para ter a máquina
que faz a camisa. Então você ganha mil reais por mês e o dono da empresa
ganha cem mil reais por mês. Essa rentabilidade que ele tem é mais ou
menos 5% em relação ao que custa a máquina. Se você é o cara que sabe
fazer tudo isso, e consegue pegar dinheiro emprestado a 1%, o que é que
você faz? Você vai comprar uma máquina de camisa e você vai trabalhar
para você mesmo. E o cara que é o dono da máquina de camisa vai ficar
desesperado, porque ele não sabe nem o que é uma camisa, um botão.
Como é que se impede que as pessoas que fazem o verdadeiro trabalho, no
Brasil, passem a ser donas do capital? Criando um fosso entre os dois.
Tornando o custo do dinheiro para financiar a compra do capital maior do
que o retorno que esse capital dá. Enquanto o custo do financiamento do
capital for maior que o retorno do capital, ninguém nunca cruza essa
linha. E você continua dependente, para sempre, daqueles que são donos
do capital. Esse é o principal motivo de você ter juros tão altos, na
ponta, no Brasil.
Mas aí a iniciativa privada percebe que
colocou o país de joelhos e fala que pode salvar o país, que pode
investir. Só que com as suas condições. E aí coloca o país de joelhos,
como refém, e começa a fazer suas exigências. Reforma trabalhista,
reforma da Previdência. Isso tudo é exigência do setor privado.
O mais triste é que a gente vê entrevistas com gente andando na
Paulista, pessoas de classe média baixa, trabalhadores, daqueles que
pegam o ônibus 4 horas da manhã, você vê no rosto a pele cansada de
trabalho, e o cara se diz a favor da reforma da Previdência, porque
disseram que só assim é que vão gerar novos empregos. É um refém mesmo!
Ele está com uma arma apontada na cabeça, estão dizendo que ele só tem
uma opção!
E depois de fazer todas as reformas, a tributária, que vai só
simplificar e não fazer justiça fiscal, e a administrativa, vocês sabem
o que vai acontecer? O ministro Paulo Guedes libera a emenda
constitucional 95 e diz que o país vai voltar a crescer e gerar riqueza
porque o Estado vai investir. Só que -- e aí vem o grande detalhe do
plano do governo -- essa riqueza não vai mais transbordar para as
camadas mais pobres. Porque já passou reforma trabalhista, a reforma da
Previdência, a reforma tributária...
•
Ou seja, os diretos sociais todos já se foram!
É isso. Está se fazendo um arcabouço de medidas para, quando o país
voltar a crescer, o ganho vai ficar com os de sempre. Este plano começa
com a emenda constitucional 95 e termina abrindo mão da emenda
constitucional 95. É esse o plano, um arco.
• E o pior de tudo é isso é que quando
crescer, vão dizer que foi em função da reforma tributária, da reforma
da Previdência. A história é contada pelos vencedores, não?
Ainda é difícil prever a história que o
ministro vai contar. O fato é que todo ganho que for gerado não vai
transbordar. E por que é que normalmente ele transborda? Porque quando
os trabalhadores têm direito de associação eles podem pressionar, podem
combinar e entrar em greve. Porque está se gerando riqueza e eles querem
a sua fatia dessa riqueza. Agora não se pode mais isso. Não há mais
sindicatos bem estruturados, fortes.
• A reforma sindical que também vem aí
é uma forma de desestruturar tudo.
Mas é claro! Está no Mein Kampf, o livro
do Hitler! Um dos capítulos do livro diz: mine os sindicatos. Assim é em
qualquer instrumento de dominação, de poder. Enfraquecer as associações.
• Mas quero insistir para entender melhor a sua análise. Como se pode
retomar o crescimento num país com mais de 12 milhões de desempregados e
não sei quantos milhões de subutilizados e desalentados, em meio a uma
forte situação econômica, com a indústria parada e com capacidade
ociosa? Isso quer dizer que a acumulação da riqueza, onde ela é gerada,
é apenas via capital financeiro?
As pessoas confundem muito, pensam em
termos de dinheiro e não em termos de riqueza. Daí a confusão. No
Brasil, vivemos um ciclo, no qual o Estado se endivida para fazer alguns
investimentos. Cada vez é um tipo de investimento diferente: ou nas
estatais, ou grandes estradas, portos, ou infraestrutura. E quando o
Estado faz essas coisas, ele gera crescimento.
Vale a pena lembrar. De 1930 a 1980, o Brasil viveu um milagre
econômico. Cresceu mais de 7% de média ao ano, porque fez muitas obras
públicas para gerar riqueza. Só que essas obras beneficiaram os grupos
que emprestaram dinheiro para o Estado. O dinheiro sempre vem de alguém.
A energia elétrica vai até a fábrica do cara, vai até o bairro nobre.
Não vai até a periferia, não vai até a favela. O aeroporto é para fazer
com que as pessoas ricas viajem. Então esse endividamento já é um
endividamento que só atende às pessoas mais ricas.
E essa dívida vai crescendo, vai crescendo e chega num ponto em que o
Estado tem que cobrar mais impostos para poder bancar esse negócio. Só
que, como quem manda no Estado são as pessoas mais ricas, elas impõem
condições e falam para o governo o seguinte: “Olha, você vai ter que
arrecadar esse dinheiro para pagar os juros da dívida, mas eu vou lhe
dizer de quem arrecadar. Você não vai pegar de mim”.
E aí são criadas leis para se arrecadar o dinheiro, principalmente das
pessoas mais pobres, e aliviar as mais ricas. O Brasil -- está no site
oficial do Ministério da Economia -- é o país que menos cobra impostos
dos mais ricos no mundo. De todos os países estudados. Entrem no site e
vejam. E o que acontece? O governo começa a tirar dinheiro das pessoas
mais pobres para pagar os juros dessa dívida que só construiu coisas
para os mais ricos. Com isso começa a haver um processo de transferência
de riqueza sem geração de nova riqueza. É só transferência. E é só a
riqueza que se tem de estoque, riqueza existente. Mas chega uma hora em
que essa riqueza existente acaba. E, quando ela acaba, os mais ricos
falam que não têm mais de quem tirar. E que é preciso gerar mais
riqueza, mas o Estado não tem como investir, está todo endividado, e diz
que o grande problema do Estado é seu endividamento. E que, para quitar
essas dívidas, o governo tem que abrir o cofre e vender tudo.
• E volta o mote das privatizações, a
busca da eficiência. O Estado tem certa ineficiência, é verdade, um
grande número de empresas estatais meio de fachada, que não geram nada
de riqueza. Mas não é o caso das grandes, dos Correios, da Petrobras.
O governo começa a pegar tudo aquilo que
foi construído com o dinheiro de todos, e guardado com o dinheiro de
todos, e passa para a mão de meia dúzia de pessoas. A conversa é sempre
igual. Lembram, há 25 anos, do Maluf, Brizola e Delfim Neto discutindo a
privatização da Vale? O Delfim foi claro: “Temos que matar esse monstro
da dívida. Vamos privatizar a Vale para matar”. É igualzinho, não muda
nada, nem uma vírgula. O problema é que o governo privatiza e não mata a
dívida. Porque a dívida é a mão invisível das pessoas mais ricas. Não é
a do Adam Smith. A dívida é a mão invisível que tira dos mais pobres
para os mais ricos, sem ninguém perceber. Aí se faz essa privatização
toda e a dívida continua crescendo, num ritmo ainda maior.
Eu quero que as pessoas se convençam de que o Estado da forma como esta
estruturado hoje no Brasil serve como uma via, um canal, um caminho,
para tirar recursos do bem comum, e dar esses recursos para os mais
ricos, sem que as pessoas percebam isso. É quase uma lavanderia de
dinheiro dos mais pobres para os mais ricos, só que, como passa por esse
mecanismo todo que eu expliquei antes, ninguém percebe mesmo. E quem
vira o culpado? O discurso mais ouvido é que é o Estado, os políticos
corruptos. Mas na lista dos 200 mais ricos do Brasil só três são
políticos. É claro que há um monte de políticos corruptos, que roubam
dinheiro, e isso é um absurdo. Mas eles são fichinha perto dos outros
que ganham muito mais nessa estrutura. Quem ganha dinheiro com essa
estrutura pesada é quem se apropria desse mecanismo!
• As privatizações resolvem o problema de caixa do governo?
Depois das privatizações, chegamos ao ponto em que não se tem mais
nenhuma riqueza para redistribuir. Então o que é que acontece? O
investidor sabe que é preciso criar riqueza no país, mas quer moleza. E
aí o governo, para ele não ter risco ao investir, oferece incentivo
fiscal, subsídio, diminui o imposto de renda, pessoa física, pessoa
jurídica. Aí ele investe, gera um pouco de riqueza. E o país tem um
surto de crescimento, um voo de galinha.
São ciclos de crescimento curto. Porque você pode ver que mesmo quando o
Brasil cresceu mais de 10% ao ano, na época da ditadura militar, sempre
tivemos crescimento com concentração. Nunca foi redistribuição.
• No governo militar o lema era
primeiro o país cresce e depois distribui. Nunca distribuiu. E no
governo Lula, o que aconteceu? Fala-se que o Bolsa Família transferiu
renda, mas que foi a política de valorização do salário mínimo que de
fato distribuiu a renda. Você concorda?
E o que é que aconteceu com a economia,
quando ele começou a fazer isso? Ela cresceu. Começou a crescer muito. E
o que é que aconteceu com o balanço de poder? Começou a ser dividido,
começou a incomodar. E aí surgem alguns problemas, você entra numa
questão política também.
No caso do Fernando Henrique Cardoso, ele, com três partidos, PSDB, DEM
e PMDB, conseguia ter maioria simples, e com quatro, maioria absoluta
(2/3). Quando ele precisava de maioria absoluta, era só colocar mais um
partido. No seu segundo governo, já eram quatro para maioria simples e
seis para maioria absoluta. No primeiro governo Dilma, eu acho que eram
dez e doze. No segundo, para ela ter maioria absoluta, eram necessários
vinte partidos! E aí essa história de negociar com o “Centrão” vira um
caos no país.
• Esse projeto econômico, que hoje
está em pleno vapor, na verdade começou quando o Joaquim Levy foi para o
Ministro da Economia, ainda no governo Dilma. Só que eles não tinham
credibilidade para aprovar nada no Congresso naquele momento, porque já
havia todo o planejamento da destituição da Dilma e a entrada do Temer.
E, com o Temer, ele de fato começou. Apagaram o projeto de lei de Dilma
e fizeram a emenda constitucional 95, o mal maior de tudo isso, porque
foi o alicerce das reformas aprovadas.
É isso aí. É ali que começa o plano.
• E, com todas essas reformas, estamos
criando uma desigualdade enorme dentro do país. Hoje, já temos 13
milhões de brasileiros abaixo da linha da miséria. São aqueles que
recebem R$ 84 per capita. Como interromper esse processo, antes que o
Brasil se transforme realmente num país de miseráveis? E sem que haja
uma ruptura no processo democrático?
O Estado tem que voltar a ganhar espaço,
ao invés de perder espaço Tem que voltar a ser mais importante, e não
menos importante.
Há outra questão para ser pensada. Temos a migração para uma economia de
serviços, antes era uma economia industrial. Uma economia de serviços é
uma economia na qual a mão de obra vai, cada vez mais, ser substituída.
A tecnologia toma o espaço das pessoas, e o trabalho delas é cada vez
mais just in time. Como funciona isso? Antigamente tinha uma empresa de
motoboy que fazia delivery, e o cara era contratado dessa empresa. Hoje,
o cara só recebe quando conclui o percurso de levar a comida do
restaurante até a tua casa. Enquanto ele está esperando, olhando no
celular, ele ganha zero. Mas ele está trabalhando. E quando ele está
fechando o negócio, ele não juntou nenhum estoque de proteção para
quando aquela mão de obra falhar. Olha que loucura, as pessoas não estão
levando isso em consideração! As pessoas, hoje, estão passando a
trabalhar dez vezes mais do que antes. Quando você era contratado, tudo
contava como trabalho. Agora, é só na hora em que você está no pico de
utilização da sua mão de obra.
• O próprio trabalho intermitente que
a reforma trabalhista trouxe é também é muito precário.
Também, só que o trabalho moderno é pior que o trabalho intermitente. É
como se você tivesse um taxímetro colado em você e, quando começa a
fazer a tarefa, vale o taxímetro. Quando para de fazer a tarefa, para o
taxímetro. No trabalho intermitente não é assim. Se você vai ao
banheiro, por exemplo, você está recebendo. No trabalho moderno, quando
você vai ao banheiro, você não ganha. E isso se multiplica por inúmeras
vezes a sua quantidade de trabalho. Como multiplica por inúmeras vezes a
quantidade, diminui por inúmeras vezes a sua longevidade de trabalho. É
igual a uma pilha! Você está usando ela o tempo inteiro, ela dura menos.
Qual é o lugar para encontrar uma salvação, para poder continuar tendo
um mínimo de dignidade? No Estado! No auxílio que o Estado vai te dar,
na assistência que o Estado vai te dar. É a única maneira. E estão
querendo diminuir o Estado, ter um Estado mínimo, num mundo de trabalho
just in time!
• Voltando ao aumento da pobreza com a
reforma da previdência, estamos publicando um estudo Anfip que analisou
o impacto da reforma junto aos municípios, com base em dados de 2017,
relativos aos pagamentos de aposentadorias do Regime Geral. O estudo
mostra que em 87,9% dos 5.570 municípios brasileiros (um total de 4.896
cidades) o pagamento da Previdência supera a arrecadação tributária. E
não é só no Nordeste, nem só em municípios mais pobres.
O argumento do governo é que há uma
transição e que as coisas não vão acontecer imediatamente. É verdade que
é uma transição. Mas só temos dois caminhos que podemos seguir. Um é o
que o governo está defendendo, que corta tudo, diminui o tamanho do
Estado, diminui a assistência, diminui a educação, diminui a saúde. O
governo diz que vai sobrar dinheiro e com essa sobra se mata a dívida, e
o mercado que se vire e arrume a vida de todo mundo. Esse é o resumo do
que ele fala.
O caminho que eu defendo é outro. Você recupera a capacidade do Estado
de investir repensando a emenda constitucional 95 e a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Em vez de Lei de Responsabilidade Fiscal,
deveríamos ter uma lei de justiça fiscal. Você readequa essas duas leis,
que são os principais entraves, e recupera a capacidade do Estado de
investir. A partir daí você vai usar o Estado, na sua função de
redistribuir a riqueza, deixando um legado para podermos gerar mais
riqueza. E com essa riqueza que você vai gerar aqui, vai matar a dívida
que você tomou, para poder fazer esse crescimento acima da Lei de
Responsabilidade Fiscal, da emenda constitucional 95.
Posso estar errado ou o Paulo Guedes pode estar errado. Se estou errado,
vou parar lá na frente mais endividado do que estou hoje, mas com um
legado construído. Com pessoas que foram salvas, com pessoas que não
sentiram dor, com crianças que foram educadas, com empresas que foram
construídas e que têm valor. Eu deixo esse legado. O problema é que o
plano do governo, se der errado, é terra arrasada. Ele só deixa um
rastro de destruição. A relação de risco-retorno das duas estratégias é
completamente diferente.
• Mas como implementar esse seu
caminho, se quem comanda o país, como você mesmo deixou claro nessa
entrevista, é a elite financeira?
Começando a fazer reportagens com pessoas que falam isso. Temos que
transformar esse debate em mainstream! É um trabalho muito difícil, mas
dá para fazer. Mídia tradicional não vai ter. Mas o bom é que, hoje, nós
temos outros canais. Por exemplo, vocês estão fazendo essa entrevista
aqui comigo. Por exemplo, eu estava sexta-feira, num congresso
brasileiro de direito administrativo, lá em Campo Grande. Lotado. E eu
falando com o pessoal de direito administrativo sobre como é a minha
visão de como funciona o Estado. Teoricamente, estava ensinando o padre
a rezar o Pai-nosso. Mas pessoas da plateia me disseram que nunca tinham
parado para pensar nas coisas que eu estava falando.
• Eu acho que é um trabalho que nós
temos a obrigação de manter, que é a resistência. Senão, seremos
cúmplices do que está acontecendo. Mas concretamente, como dar a virada?
Gente, em 25 anos a gente transforma este país completamente. O Brasil tem tudo. É inimaginável. Precisamos, primeiro, de um Estado que volte a reinvestir e um legislativo que dê suporte para isso. Porque o grande problema é que, hoje, não adianta ter um monte de ideias boas com um legislativo que vá ficar remando contra e negociando tudo. Então temos que eleger melhor os representantes do legislativo também na próxima eleição. Esse nosso Congresso atual tem uma boa parcela de parlamentares que é um caos, numa defesa cega do liberalismo na economia e do conservadorismo nos costumes!
SEGURIDADE SOCIAL, CONSTITUIÇÃO E REFORMA DA PREVIDÊNCIA NO CONTEXTO DO ULTRALIBERALISMO
Larissa Castilho
O modelo de seguridade social
originalmente estabelecido pela Constituição de 1988 teve como
inspiração a ideia de seguridade social desenvolvida pelo economista
britânico William Beveridge, em seu Relatório Sobre Seguro Social e
Serviços Afins, que serviu de base para implementar o modelo de Estado
de bem-estar social inglês.
O objetivo de Beveridge era criar um sistema de se- guro social de
cobertura abrangente, compreendendo os riscos sociais desde o nascimento
até o falecimento (from the cradle to the grave — “do berço ao túmulo”).
A ideia era que todos os trabalhadores pagassem uma contribuição ao
estado, que, em troca, pagaria benefícios aos desem- pregados, enfermos,
aposentados e viúvos, a fim de que fosse garantido um padrão mínimo
aceitável de vida na Grã-Bretanha. Tinha uma forma de custeio tríplice,
com impostos do tesouro britânico, contribuição dos cidadãos e dos
empregadores. O valor da contribuição era nacio- nalmente unificado,
assim como o valor do retorno, que se pautava numa transferência de um
valor mínimo que nem sempre atendia às necessidades dos beneficiários.
Além de sua inclinação para o modelo beveridgia- no, a seguridade social
na Constituição de 1988 observou também o modelo estabelecido nas
constituições de 1934 e 1946, que protegia prioritariamente aqueles que
contribuíam para o sistema. Era necessário ostentar a con- dição de
trabalhador para obter os benefícios, que deveriam ser custeados pelas
contribuições do Estado, empregados e empregadores. Somente ao fim do
processo constituinte, a assistência social, independente de
contribuição, assumiu o status de política social, passando a integrar o
sistema de seguridade, e a saúde foi levada a condição de direito
universal, com acesso igualitário.
A seguridade social, da qual fazem parte a previdência, a assistência
social e a saúde, está inserida no Título VIII da Constituição, que
trata da ordem social e estabelece como seus objetivos o bem-estar e a
justiça sociais, baseados em princípios que se destinam a promover a
cidadania e um padrão de vida considerado satisfatório, com financiamen-
to de base diversificada respaldado em orçamento único, gerido
democraticamente e que alcance universalmente a população brasileira.
Com relação à previdência social, o texto original da Carta de 1988
destacava o seu caráter contributivo, definia as contribuições devidas,
permitia a aposentadoria por tempo de serviço independente do tempo de
contribuição, garantia benefícios e aposentadorias não inferiores ao
salário mínimo, além de sua irredutibilidade e a participação por
contribuição direta, dentre outros avanços. O texto original foi
alterado pela emenda constitucional 20/1998. A emenda representou uma
reaproximação do modelo bismarckiano, que se assemelha aos seguros
privados, cujo acesso é basicamente restrito aos trabalhadores
assalaria- dos e seus dependentes, por meio de contribuição prévia e com
retorno proporcional a essa contribuição.
Recentemente o texto constitucional referente ao sistema de seguridade
social sofreu novas alterações pelo texto da PEC 6/2019, aprofundando a
desconstrução do significado de seguridade social inscrito no texto da
Constituição Federal de 1988, a fim de atender às demandas do
ultraliberalismo.
O texto aprovado traz alterações, como o
aumento da idade mínima para aposentadoria, para 65 anos, no caso dos
homens, e de 62 anos para as mulheres trabalhadoras urbanas, com tempo
mínimo de contribuição de 15 anos para quem já contribui para o
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Estabelece também uma nova
metodologia de cálculo dos benefícios, partido de 60% do valor da mé-
dia salarial somada a 2% a mais para cada ano de contribuição superior
ao 15º. Define novos valores para a pensão por morte, fixada em 50% do
valor do salário somada a 10% por dependente, podendo ser integral
quando se tratar de dependente portador de deficiência. Também veda o
acúmulo de benefícios do mesmo regime, estabelecendo o sistema
escalonado de valores para os casos em que ocorra acumulação. Há ainda
novas alíquotas de contribuição aplicáveis a determinadas faixas
salariais, podendo partir de 7,5% e chegar até 22%, entre outras.
Para compreender os fundamentos e objetivos da reforma da Previdência é
importante ter um olhar atento para os argumentos apresentados por seus
entusiastas, que mencionam um suposto déficit orçamentário, a ameaça de
um provável colapso do sistema nas próximas décadas, a ideia de economia
de recursos públicos com o combate aos privilégios de servidores
públicos e aposentados.
Especialistas contrários às reformas argumentam sobre o caráter
falacioso de muitas dessas afirmações, destacando que a ideia de déficit
de recursos se pauta em cálculos que desconsideram o fato de o orçamento
da seguridade social ser único, e com fontes variadas de custeio, que
vão além dos trabalhadores ativos; que não há como afirmar
categoricamente a possibilidade de uma quebra do sistema de seguridade
até 2060, que já existiriam mecanismos de correção de distorções no
sistema de concessão dos benefícios e que os gastos com o sistema da
dívi- da superam, inclusive, os gastos anuais com a seguridade. Quanto à
economia de recursos, afirmam, pode ser obtida reduzindo as desonerações
fiscais e responsabilizando os grandes devedores da Previdência.
Desde o processo de construção da Constituição Federal não houve trégua
no conflito entre o ideário neoliberal, tão em voga na década de 1980, e
a ideia de cidadania social trazida pela Carta de 1988. Primeiro,
durante toda a década de 1990, quando foram adotadas diversas medidas
flexibilizadoras dos preceitos constitucionais a respeito das relações
de trabalho e previdência social. Entre 2003 e 2006, economistas ligados
ao capital ocuparam postos importantes no governo, que vivia uma
ambiguidade entre uma política econômica ortodoxa e a defesa da proteção
social. No período de 2007 a 2014, o crescimento econômico possibilitou
a melhora das condições de vida e trabalho da população, mas não
conduziu a reformas estruturais necessárias, perdendo força entre os
anos de 2015-2019, quando ocorre a retomada do projeto ultraliberal com
muita força.
É importante pensar que a luta pela preservação e universalização da
seguridade social deve ser um dos principais horizontes deste momento,
considerando o possível desaparecimento de diversas profissões em
virtude do em- prego da inteligência artificial, o alto nível de
desemprego e precarização das relações de trabalho, que inviabilizam a
participação social das pessoas e a própria manutenção de seu sustento.
É importante defender a assistência social como direito, e não
substituto paliativo do trabalho e do emprego, a saúde pública gratuita
e acessível a todos os brasileiros e a previdência social enquanto
política de proteção às diferentes formas de trabalho, apoiada em uma
ideia de “contrato social” solidário, para o qual cada pessoa contribui
de acordo com suas condições e usufrui segundo suas necessidades.
(*) LARISSA XIMENES DE CASTILHO JOHNSON é professora de Direito da UNINASSAU/Recife e Mestra em Direito pela UFPE.