003 2003 2014
A confecção desta edição da Por Sinal deu-se entre os
primeiros sons dos sinos natalinos e os últimos dos tamborins do carnaval. Mas
não pensem que foi embalada pelo ritmo das festas, pois assuntos de suma
importância para a nação brasileira, para os servidores públicos federais e,
especificamente, para os do Banco Central do Brasil (BC), como a proposta
governamental de Reforma da Previdência e a Medida Provisória 805/2017, que adia
os reajustes salariais previstos em lei e aumenta a contribuição previdenciária,
mantiveram a preocupação geral e a necessidade de resistência em graus elevados. O recesso de final do ano, tanto no Congresso Nacional, quanto no Judiciário,
retirou as discussões dos plenários e das comissões, abertas ao público, e
levaram-nas para gabinetes mais privados, onde negócios e negociações podem ser
tratados de forma mais sigilosa. O governo federal, por um lado, continua a
busca desesperada pelos votos dos parlamentares, necessários para a aprovação
da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/2016, que reforma as regras
previdenciárias, e, por outro, busca cassar a liminar concedida pelo Ministro
Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu os efeitos da MP
805/2017, o que permitiu que os servidores recebessem os salários de
janeiro/2018 com o reajuste acordado. Para coroar o ambiente de incerteza
reinante, uma intervenção federal na área de segurança pública do estado do
Rio de Janeiro veio dar ares ainda mais nebulosos ao cenário político nacional. As descontroladas atividades das empresas transportadoras de valores,
denunciadas na operação Lava Jato, que transformam suas bases em uma grande
tesouraria bancária operando um sistema financeiro paralelo; as malas repletas
de cédulas de real que circulam livremente de mão em mão sem que o BC e o
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) consigam coibir preventivamente; a concentração bancária que dificulta e
quase impede a concorrência entre as instituições financeiras, que poderia ser
a salvação do consumidor bancário em sua desigual luta contra os juros
exorbitantes; a precarização e a ameaça de privatização da Casa da Moeda do
Brasil; e as criptomoedas, acusadas por uns de se
constituírem nas novas bolhas especulativas e adoradas por outros como sendo o
investimento não mais do futuro, mas do presente, cuja regulamentação ainda é
incipiente diante da dimensão financeira que representa, são os temas de nossas
matérias. No âmbito nacional, o entrevistado é João Joaquim de Melo Neto Segundo, o
Joaquim Melo, que, no Conjunto Palmeira, bairro de Fortaleza (CE), construiu o
Banco Palmas, o primeiro banco comunitário no país, que estimula a geração de
trabalho e o desenvolvimento econômico de comunidades de baixa renda. Em suas
palavras um fascinante relato da transformação de um sonho em realidade. O Conselho Editorial da Por Sinal espera entregar a
seus leitores uma revista capaz de enfocar assuntos de interesse jornalístico
que, ultrapassando as fronteiras corporativas, colaborem para todos termos uma
visão mais clara do complicado mosaico político, econômico, financeiro e social
de nosso país. Boa leitura.
SINDICATO NACIONAL DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO CENTRAL (SINAL)
CONSELHO NACIONAL BIÊNIO 2017/2019
Presidente Fortaleza
DIRETORIA EXECUTIVA NACIONAL BIÊNIO 2017/2019
Presidente
Diretor de Estudos Técnicos
EXPEDIENTE ANO 16 NÚMERO 56 FEVEREIRO 2018
Por Sinal Revista do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central do Brasil
Conselho Editorial
Daro Marcos Piffer, Edil Batista Júnior, Epitacio da Silva
Ribeiro, Jordan Alisson Pereira, Maria Juliana Zeilmann Fabris, Nehemias
Monteiro Júnior, Paula Castello Branco Teklenburg e Paulo Lino Gonçalves.
Secretária: Sandra de Sousa Leal SCS Quadra 01 – Bloco G sala 401 – Térreo Ed. Baracat – Asa Sul – Cep 70.309900 – Brasília – DF Telefone: (61) 33228208 Contato com a Por Sinal: porsinal@sinal.org.br
Redação Coordenação geral e edição: Flavia Cavalcanti (Letra Viva Comunicação)
Reportagem: Jefferson Guedes, Verônica Couto, Elane Maciel,
Cristina Chacel e Carmen Nery
llustrações: Claudio Duarte
Assessoria de Comunicação do Sinal Nacional: Rapport.
Permitida a reprodução das matérias, desde que citada a fonte. O Conselho Editorial não se responsabiliza pelas opiniões expressas nos artigos assinados.
UM SISTEMA FINANCEIRO PARALELO
VERÔNICA COUTO
São cerca de R$ 20 bilhões em dinheiro vivo circulando diariamente pelas
ruas e estradas do país, segundo a Associação Brasileira de Empresas de
Transporte de Valores (ABTV). É muito dinheiro em trânsito, para pouca fiscalização, alertam especialistas que registram como corriqueira a prática de algumas
empresas “armazenarem” os valores em suas próprias bases, antes de entregá-los
ao seu destino. Essa custódia aumenta o risco de captura da atividade para lavagem de dinheiro, concessão de empréstimos informais, formação de Caixa 2,
pagamento de propinas, envio de recursos para o exterior, entre outras
irregularidades. Um verdadeiro sistema financeiro paralelo, que funciona fora
do alcance dos sistemas de controle aplicados à movimentação bancária. A custódia de dinheiro é uma função exclusiva de instituições financeiras, de
acordo com a Lei do Sistema Financeiro Nacional (Lei 4.595 /64). Mas está para
ser autorizada às ETVs no novo Estatuto da Segurança Privada e da Segurança das
Instituições Financeiras (Substitutivo da Câmara nº 06/2016 ao PLS 135/2010),
pronto para ser votado no Senado. “Quando se vê um carro-forte recolher dinheiro nas lojas dos supermercados, nos shoppings, significa que esse carro-forte está trabalhando para
várias instituições financeiras. Isso porque o mercado de transporte de
valores é significantemente restrito a umas poucas empresas”, explica Wagner
Carvalho, conselheiro do Sinal, que atua no Departamento de Meio Circulante (Mecir)
do BC. Ele chama a atenção para o fato de que existem duas situações de
terceirização. “O Banco Central terceirizou parte de sua tesouraria, tendo
como parceira uma instituição financeira, o Banco do Brasil. E as IFs
terceirizaram as atividades de controle e guarda de estoque de dinheiro pela
contratação de empresas de transporte de valores (ETVs).” Mais grave ainda, as empresas de transporte estariam não só armazenando, mas também manipulando e processando os recursos, atuando praticamente como correspondentes bancários. “Os malotes de dinheiro são abertos nos QGs [quartéis-generais] das transportadoras, e aí perde-se o controle sobre eles”, diz o dirigente da Contraf-CUT. Imagine-se, por exemplo, o seguinte cenário: uma ETV recolhe no fim do dia o dinheiro faturado por uma farmácia, mas, em vez de levá-lo diretamente a uma agência bancária, processa-o na sua própria sede, de forma terceirizada, para o banco. Isso significa, explica Tabatinga Jr., abrir os malotes, manipular as notas ou moedas, eventualmente substituí-las. Quando esse dinheiro finalmente chegar à agência, não há como garantir que sua totalidade venha, de fato, daquela farmácia, e não de uma operação ilegal, como tráfico de drogas ou jogo do bicho. Da mesma forma, se esse dinheiro tiver origem em um banco, não se pode assegurar que não vá abastecer o crime durante o período de custódia, enquanto, em tese, deveria estar guardado nos cofres.
A custódia e o processamento de dinheiro em bases de transportadoras
começaram como um expediente para driblar situações nas quais “a agência
bancária estava ‘entupida de dinheiro’, e não conseguia repassá-lo a tempo ao
Banco do Brasil, para ser enviado ao Banco Central”, conta o dirigente da
Contraf-CUT. Os valores seguiam então para a transportadora, permitindo
acertar a contabilidade diária do banco. O malote, contudo, ainda permanecia fechado para entrega no
dia seguinte nos bancos oficiais, que faziam seu processamento, autenticando e
contabilizando o recurso no caixa da instituição financeira. “Agora, quando
chega na transportadora, o malote é aberto e o numerário é processado ali mesmo:
o dinheiro, que vem cintado, sai para bancos, lojas ou outros destinos. Há uma
quebra de contabilização nesse momento, com risco de o dinheiro ser usado para
fazer alavancagem ou lavagem.” O único documento para fiscalização desses valores em trânsito é uma guia de transporte, diz Tabatinga Jr. Para
ele, seria preciso determinar um prazo máximo entre o recolhimento do dinheiro e
sua contabilização no banco, haver um lançamento formal em caixa da custódia
feita na transportadora e a criação de novos controles escriturais. O diretor do
Sinal, Daro Piffer, é da mesma opinão. “Seria preciso instituir um controle
escritural, de processo, verificar se o dinheiro transportado confere com a
contabilidade das empresas. E isso não é feito.” O Banco Central não fiscaliza as transportadoras de valores porque elas não
são instituições financeiras, no sentido formal. Tecnicamente, são
supervisionadas pelo Ministério da Justiça, que delegou à Polícia Federal o
acompanhamento das empresas do setor. Mas o foco de atenção da PF está na
segurança física do serviço — alvo frequente de assaltos —, na legalidade do
armamento, no pessoal de vigilância. Para Piffer, a falta de supervisão
especializada para as movimentações de dinheiro representa uma fragilidade no
sistema, que pode ser aproveitada para desvios.
O problema é quando nada disso passa pelo banco. Ou se passa, passa pelas
sombras. Foi o que aconteceu na quadrilha formada por parlamentares e empresários de ônibus no Rio. Uma petição do MPF, de 28 de junho de 2017, relativa à
Operação Ponto Final (que investigou as empresas de ônibus do Rio), aponta a
existência de “veementes indícios” de que os proprietários das transportadoras
de valores Trans-Expert e da Transegur “ocultaram milionária quantia arrecadada para a caixinha da propina da Fetranspor, pelo menos entre os anos de
2010 e 2016, em valores de cerca de R$ 260 milhões, operando como agentes
financeiros para a guarda e distribuição segura das vantagens indevidas
distribuídas a mando dos empresários de transporte público, sem qualquer
comunicação dessas operações suspeitas ao Coaf”. Segundo Wagner Carvalho, “os valores que têm sido retidos pelas operações
realizadas pela Polícia Federal, além da saída de grandes valores do país,
encontrados em contas nos chamados ‘paraísos fiscais’, parecem indicar que as
determinações não vêm sendo cumpridas, seja por bancos, por empresas, e por
particulares, que transacionam grandes somas em dinheiro em espécie, nacional
ou estrangeiro”.
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O CAMINHO DAS FRAUDES ELANE MACIEL
As imagens das malas com R$ 51 milhões apreendidas pela Polícia Federal, em
setembro último, num imóvel usado pelo ex-ministro Geddel Vieira Lima, deixou os
brasileiros com a pulga atrás da orelha. Motivo: as notas de R$ 50 e R$ 100
eram seriadas, cintadas e exibiam a sigla de um banco, cujos donos estão envolvidos na Operação Lava-Jato. Diante de cena tão reveladora, uma pergunta ficou
no ar. Onde estavam os órgãos fiscalizadores, responsáveis por coibir a
lavagem de dinheiro, que não detectaram essa estranha movimentação? O COMEÇO DE TUDO Diante de operações irregulares que deveriam ter sido detectadas pelos
filtros do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e do Banco
Central, é razoável supor que de fato há sérias lacunas na fiscalização desses
órgãos. E, pelo visto, as falhas estão desde o começo dos trabalhos. Ao
suspeitar de qualquer irregularidade em uma operação financeira, cabe à
instituição bancária informar a suspeita ao Coaf, órgão do Ministério da
Fazenda, criado em 1998 exatamente com a finalidade de “disciplinar, aplicar
penas, receber, examinar e identificar ocorrências suspeitas de atividades ilícitas relacionadas à lavagem de dinheiro”. Como essa comunicação é espontânea, se
o banco for conivente e estiver envolvido no esquema fraudador, simplesmente
não informa. A obrigatoriedade da instituição de pagar para denunciar a operação
suspeita também pode ser fator inibidor de denúncias. Pelas contas da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em 2016, foram
registradas 65 bilhões de transações bancárias, das quais 57% feitas por móbile
ou internet banking —menos sujeitas à fraude do que as transações com cheque.
Desse total, 56 mil foram consideradas suspeitas e comunicadas ao Coaf. À
primeira vista, o número impressiona. Mas se comparado aos bilhões de reais
irregulares descobertos pela Operação Lava-Jato, é irrisório, quase residual,
pois está longe de representar 1% das operações efetivamente realizadas. Das
operações informadas ao Coaf, apenas 17% (9.520) originaram algum tipo de
investigação. Na engrenagem para coibir a circulação de recursos ilícitos, o Banco
Central, integrante do Sistema Brasileiro de Prevenção à Lavagem de Dinheiro,
tem um papel fundamental, ao regular e fiscalizar a governança, os processos e
os controles das instituições financeiras supervisionadas. O objetivo é
contribuir para que os bancos identifiquem, analisem e comuniquem as operações
suspeitas ao Coaf. Este, por sua vez, gera relatórios de inteligência e os
encaminha aos órgãos de investigação — Polícia Federal e Ministério Público
Federal. O BC ajuda ainda os dois órgãos com infra-estrutura, a fim de atender às
demandas de bloqueio e rastreamento de valores. O PAPEL DO BC
Apesar do seu engajamento no combate à corrupção, só em 2017 o Banco de
cidiu reunir seus pares para discutir o assunto, promovendo o 1º Seminário de
Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento ao Terrorismo, em setembro,
na cidade de São Paulo. No evento, divulgou dados sobre o esquema de
fiscalização adotado: o trabalho presencial contínuo é feito em 27 bancos
classificados de alto impacto —aqueles que realizam as maiores transações financeiras. O restante da fiscalização fica por conta do Sistema Integrado de
Suporte e Comunicação da Supervisão (Siscom), com inspeções remotas em 1.779
instituições financeiras não bancárias e bancárias de médio e de pequeno
porte. O resultado da vigilância do BC originou aplicação de multas, de 2014 a
meados de 2017, de R$ 695 milhões — sendo R$ 123 milhões confirmados em processo
pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, o chamado
Conselhinho. O montante arrecadado é expressivo, se forem levados em conta os
mecanismos à disposição dos bancos para que não paguem as quantias devidas.
Isto porque é comum eles recorrerem das sanções no Conselhinho, formado por
órgãos públicos e representantes do setor privado. Se receberem parecer
desfavorável, eles têm a segunda chance no próprio órgão. No entanto, ao BC é
vetado o direito de questionar a nova decisão. Os multados ainda têm a opção de
entrar com ação na Justiça. Com a conhecida lentidão do Judiciário, muitas vezes
o processo prescreve e a instituição nada paga. LEI ATUALIZADA Desde as décadas de 1980 e 1990, quando foram instituídas as primeiras leis
sobre crimes do colarinho branco no Brasil , a legislação vem sendo aprimorada
para identificar e combater a lavagem de dinheiro. É o que diz o experiente
consultor Dagberto Cavalcanti Pereira Melo, da DCPM Consultoria e Assessoria
Organizacional, aposentado que trabalhou 40 anos no Banco Central, dos quais 18
chefiando o Departamento de Organização do Sistema Financeiro, em Recife. “As leis brasileiras estão em linha com o que há de mais moderno quando o
assunto é lavagem de dinheiro, e constantemente são atualizadas”. E completa:
“A regulamentação do Banco Central é das mais perfeitas que existe no mundo”.
Depois dos crimes revelados pela Operação Lava-Jato, o BC tem alterado várias
vezes seus procedimentos. O mais recente foi a aprovação da Lei 13.506, de 13 de novembro de 2017, que revê o marco legal punitivo do sistema
financeiro, elevando a multa de R$ 200 mil para R$ 2 bilhões, ou 0,5% da receita
de serviços e de produtos apurados no ano anterior ao da infração. A ideia é
coibir ações ilícitas nas instituições financeiras. FISCALIZAÇÃO COMPROMETIDA Pelo volume de operações realizadas, não é tarefa fácil monitorar o sistema
financeiro. Para o Sinal, que há anos denuncia o desmonte do setor público, o
problema principal é a falta de recursos e de técnicos para fiscalizar in loco os bancos. O quadro é crítico. Segundo dados
do Sindicato, de 30% a 40% das ações programadas de fiscalização presencial
deixam de ser realizadas, porque não há pessoal nem verba, até mesmo para
pagamentos de diárias. Para contornar a situação quando detecta alguma
irregularidade, o BC adota o expediente de enviar carta ao banco solicitando
esclarecimentos. “A troca de cartas é insuficiente. Se o banco não for conivente com a irregularidade, responde a verdade; caso contrário, informa o que quer”, pondera
Daro Piffer, diretor de Estudos Técnicos do Sinal. No caso da fiscalização direta, a experiência dos fiscais fala mais
alto. Qualquer operação fora do padrão é identificada rapidamente, tornando o
processo mais ágil. Um bom exemplo para ilustrar a lentidão da fiscalização indireta foi a fraude
bilionária, de R$ 4,3 bilhões, do Banco Panamericano. Durante quatro anos, de
2006 a 2010, o banco do Grupo Silvio Santos inflou seus balanços, ao
contabilizar carteiras de créditos vendidas a outras instituições financeiras
como parte de seu patrimônio. O BC suspeitou de irregularidades e chegou a
trocar, nesse período, correspondências com o Panamericano, durante mais de dois
anos. Quando percebeu a gravidade da crise, entrou em ação. Mas outros bancos
já estavam operando da mesma forma na cessão de créditos. Por sorte, foi
possível refazer, a tempo, a capacidade financeira dessas instituições e, com
isso, superar os danos produzidos pelas operações irregulares. Daro aponta três fatores que contribuem para agravar o quadro, já crítico,
da carência de recursos humanos na área de fiscalização do BC: funcionários se
aposentando, a falta de concursos para repor servidores aposentados e a demora
na formação dos técnicos. “O pessoal se aposenta e leva embora o conhecimento
natural, adquirido ao longo da vida laboral. Isto prejudica a formação dos
técnicos novos, que conseguem absorver conhecimento mais rápido com quem tem
experiência”. A preocupação do diretor do Sinal faz todo o sentido, especialmente num momento de grande descrédito em relação ao poder de fiscalização dos órgãos públicos. “O mercado está cada vez mais criativo. Por isso mesmo não basta só ter a lei. O governo tem obrigação de regular e fiscalizar, mas quando abre mão disso, fica tudo ao deus-dará”, lamenta.
CASA DA MOEDA, A BOLA DA VEZ? NINGUÉM SABE AO CERTO QUAL SERÁ O FUTURO DA EMPRESA. TODOS OS CONSULTADOS PELA POR SINAL, NO ENTANTO, SÃO UNÂNIMES EM DIZER QUE A MOTIVAÇÃO PARA A PRIVATIZAÇÃO É MAIS DE ORDEM IDEOLÓGICA DO QUE FINANCEIRA. CRISTINA CHACEL
Intenção ou decisão, não se sabe. O que mais há no caminho da anunciada privatização da Casa da Moeda do Brasil são zonas de sombra. Incluída no pacote de 57 projetos de concessões e privatizações do governo Temer, a histórica empresa que há mais de 300 anos fabrica o dinheiro brasileiro, além de moedas, medalhas e impressos de segurança, vive em um mar de incertezas. Na diretoria, a ordem é calar. O assunto é tratado como uma exclusividade do governo. Este, por sua vez, se atrapalha quando tenta explicar por que passar nos cobres o patrimônio estatal. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Wellington Moreira Franco, encarregado do anúncio, alegou que a empresa amarga sucessivos prejuízos, por conta da queda no consumo de cédulas e moedas no país. Errou. Em entrevista publicada pelo jornal O Globo, seu colega da Fazenda, Henrique Meirelles, tratou de corrigir: “Ela (Casa da Moeda) vai muito bem. Não há problema. Mas a questão é olhar isso a longo prazo.” Sobretudo porque, segundo Meirelles, o volume de cédulas em circulação caiu mais de 60%, por causa da digitalização cada vez maior do meio circulante. Não disse em que período de tempo, nem quem mediu. Fica o dito pelo não dito. Quando a comunicação não é clara, sobram meias verdades pelo caminho. O
ministro Moreira Franco poderia ter se poupado publicamente se tivesse passado
uma vista d’olhos no Relatório de Sustentabilidade da Casa da Moeda, biênio
2015-2016, disponível na internet. Ali estão os números. Mesmo em tempos de
forte tormenta, a empresa logrou receitas brutas de R$ 2,411 bilhões e R$
2,408 bilhões, respectivamente, garantindo lucros nos dois exercícios, é bem
verdade que muito inferiores à série histórica dos últimos seis anos. Em 2015, o
lucro líquido foi de R$ 311,3 milhões e, em 2016, tombou, violentamente, para R$
60,2 milhões. Não, ministros. O lucro não despencou por conta do aumento do uso
de meios eletrônicos de pagamento, em detrimento de cédulas e moedas. No caminho
das meias verdades veio a crise econômica e, com ela, o contingenciamento de
gastos do governo e a recessão que se arrasta até os dias de hoje. CORTINA DE FUMAÇA Por que vender a Casa da Moeda é uma pergunta que o governo ainda precisa responder. Analistas de mercado, economistas, pessoal de consultorias, tecnocratas e empregados da empresa concordam que a motivação é mais de ordem ideológica do que financeira. A privatização da Casa da Moeda interessaria muito mais a um projeto neoliberal, de Estado mínimo e oportunidades a investidores privados, do que à irrelevante contribuição para um superávit fiscal. Entre os empregados, há quem aposte que a inclusão da empresa no pacote de Temer teria o propósito de roubar as atenções sobre a venda da Eletrobras, a venda que importa. Afinal, a Casa da Moeda é brasão e bandeira do Brasil. Um patrimônio simbólico capaz de mobilizar resistências. Será? Fala-se, ainda, em manobras da concorrência internacional. No rosário de hipóteses, encaixa-se como uma luva a máxima cunhada pelo Barão de Itararé: há algo no ar além dos aviões de carreira. Não é a primeira vez que se cogita privatizar a fábrica secular do dinheiro brasileiro. Nos anos 1990, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, seu nome ventilou nos bastidores de Brasília. Mas a empresa acabou salva, quem diria, pela nova moeda, o real. Em 1994, a Casa da Moeda surpreendeu ao fornecer, em tempo hábil e recorde, todas as denominações do novo meio circulante brasileiro, afastando o risco de desabastecimento. Só 10% das cédulas da primeira família foram adquiridas no exterior. Agora, porém, na curta Era Temer, a perspectiva parece ter ganho materialida
de, diz o presidente do Sindicato Nacional dos Moedeiros, Aluizio Firmiano
Junior. Reeleito em junho deste ano para o segundo mandato, que segue até
2020, Firmiano representa uma categoria que toda ela trabalha na Casa da Moeda
(dos 2.750 empregados, 2.200 são sindicalizados). Atônitos, os moedeiros
testemunham o que Firmiano chama de “ação orquestrada para inviabilizar a
estatal, com o objetivo de privatizar”. LINHA DO TEMPO Uma rápida retrospectiva oferece-nos alguns dados em jogo nesse tabuleiro. A empresa entrou no século 21 com excelente saúde financeira. Tanto que, em 2008, o Banco Central provocou a Casa da Moeda a desenvolver a segunda família do real e apresentou uma previsão de demanda para o período 2009-2018 de 3,7 bilhões de unidades de cédulas e 2 bilhões de moedas. O desafio levou a empresa a investir R$ 1 bilhão, entre 2009 e 2012, na modernização do parque gráfico de cédulas e em equipamentos para a produção de moedas. E se estruturou para melhor atender o cliente realizando dois concursos públicos, em 2009 e 2011, que resultaram na contratação de novos 800 empregados. Além da nova família do real, o calendário esportivo internacional, que sinalizava no horizonte a realização no Brasil da Copa do Mundo de futebol (2014) e as Olimpíadas e Paralimpíadas do Rio (2016), oferecia uma oportunidade extra para a estatal mostrar, com as moedas comemorativas, sua capacidade de criação e inovação. A Casa da Moeda gozava, então, de boa saúde econômica. Sempre com receitas anuais superiores a R$ 2 bilhões, sempre distribuindo dividendos ao Tesouro, a cada exercício. Até que veio a crise. O primeiro golpe foi desferido no final de 2013, quando o Tesouro reduziu a um terço o orçamento original do Banco Central. De R$ 1,7 bilhão, caiu para R$ 500 milhões, respingando sem piedade no Programa Anual de Produção da Casa da Moeda. Da previsão inicial de 3,8 bilhões de unidades de cédulas, feita lá em 2008, o BC, que já havia confirmado em agosto a encomenda, para 2014, de 3,5 bilhões, só autorizou a produção de 1,2 bilhão. O mesmo aconteceu com as moedas. A previsão de 2008, que era de 1,9 bilhão de unidades de moedas e havia sido confirmada em 1,7 bilhão, tombou para 600 milhões. A empresa sentiu o golpe. O lucro líquido, que em 2013 havia sido de R$ 783,6 milhões, despencou para 223,1 milhões. Naquela ocasião, o BC respondia por cerca de 30% da receita da Casa da Moeda. Apertada com os investimentos realizados na perspectiva de outro patamar de produção, a empresa acabou gastando mais do que ganhando nas unidades de cédulas e moedas. O estrago só não foi maior porque a receita obtida com o Sistema de Controle de Bebidas (Sicobe), contratado pela Secretaria da Receita Federal e responsável por 50% do faturamento anual, amorteceu a queda, representando, naquele ano, 75% da receita. Mas os problemas estavam longe de acabar. Em 2015, o BC quebra a rotina e não apresenta, no prazo convencionado — até o início do segundo semestre de cada ano —, a previsão de encomenda para o ano seguinte. A informação essencial ao planejamento da produção de 2016 só chega à empresa em abril do mesmo ano e o contrato só é assinado em 27 de maio. Com a desordem instalada, em reunião de emergência, técnicos da Casa da Moeda sugerem aos técnicos do BC rever o mix de produção. Considerando o cronograma, os estoques de matéria-prima e os prazos dos processos, propõem cunhar mais moedas de R$ 1 e reduzir o quantitativo de cédulas de R$ 2. A proposta é aceita e registrada em documento interno, levado ao Ministério da Fazenda. É justamente este documento que vai fundamentar a aprovação, em 15 de setembro, da MP 745 (hoje Lei 13416/17), liberando o Banco Central a buscar fornecedor externo de cédulas. O argumento era de que a Casa da Moeda não estaria preparada para atender ao pedido e que era preciso evitar desabastecimento. E as surpresas continuam. Dois dias depois, em 17 de setembro, é assinado o contrato do Banco Central com a empresa sueca Crane AB, com sede nos Estados Unidos, para a importação de 100 milhões de cédulas de R$ 2, no valor de R$ 20,2 milhões. Nunca antes na história desse país se negociou um contrato de importação em
tal velocidade dois dias! Quanto mais uma aquisição envolvendo um produto de
segurança — dinheiro brasileiro. A importação fez acender a luz vermelha na
fábrica de Santa Cruz. Desafiados, os empregados acabaram assinando um acordo
de hora extra com a Casa da Moeda de modo a que pudesse cumprir a encomenda
original — nenhuma nota de R$ 2 a menos! o que efetivamente foi feito, no
prazo recorde de setembro a dezembro. Há algo no ar além dos aviões de carreira? ATIVO ESTRATÉGICO Hoje a Casa da Moeda do Brasil opera abaixo da sua capacidade de produção anual, de 3 bilhões de cédulas, 4 bilhões de moedas, 3 milhões de passaportes e 8 milhões de selos fiscais. Asfixiada pela crise e refém do Banco Central, seu cliente preferencial, fez o dever de casa no biênio 2015-2016, como informa o Relatório de Sustentabilidade. No parque industrial de Santa Cruz, uma sesmaria de 500 mil metros quadrados, com 120 mil metros quadrados de área construída, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que é o maior complexo gráfico e metalúrgico de segurança da América Latina, reestruturou a gestão, em unidades de negócios, extinguiu diretorias, criou outras, realocou empregados e reduziu em R$ 100 milhões seu endividamento, no período, logrando diminuir seu custo financeiro em R$ 10 milhões. Investiu também em novos mercados, como o da Argentina, fechando um contrato para o fornecimento de 167,8 milhões de cédulas de 100 pesos. As perspectivas, porém, não são animadoras. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o diretor de Inovação e Mercado da empresa, César Barbiero, admitiu que a empresa deve fechar 2017 no vermelho, resultado provocado pelo fim do contrato com a Receita Federal para desenvolvimento e impressão de selos fiscais rastreáveis de bebidas. Em termos financeiros, era o principal cliente da Casa da Moeda, provedor de cerca de 50% do faturamento anual, que até agora vinha, inclusive, amortecendo o tranco da crise. A descontinuação do sistema foi comunicada em 13 de dezembro de 2016. Uma queda de mais de R$ 1 bilhão no faturamento deste ano. “O moral da tropa está baixo”, confidencia um funcionário de carreira dos
quadros médios da Casa da Moeda. O acordo coletivo de 2017 chegou ao fim do ano
em aberto. O Plano de Desligamento Voluntário não atrai. O medo do desemprego
se espalha. A lei que permite ao Banco Central buscar outras alternativas de
fornecimento de cédulas e moedas fora do Brasil é vista como instrumento de
pressão para baixar preço. Quando questionado sobre a importação, o BC, por
meio de sua assessoria de imprensa, fez saber ao Brasil que a compra no exterior
tinha sido mais vantajosa em termos de preço. Não se sabe se contabilizou na sua
planilha o fato de a receita da Casa da Moeda voltar para o país sob a forma de
distribuição de dividendos ao Tesouro Nacional. O que se sabe é que o ativo es
tratégico e intangível da soberania monetária, em desuso no governo Temer,
parece ter ido para o vinagre. DUAS FACES DA MOEDA Economistas advertem que a fabricação do dinheiro não deve ser confundida com política monetária. A Casa da Moeda é só um instrumento do Banco Central. Não decide nada. Observam, ainda, que o fato de o meio circulante ser produzido por uma empresa privada não implica risco de fraudes. “O controle disso não passa pelo capital da empresa, se é um capital estatal ou privado”, pondera a professora de Economia Margarida Gutierrez, do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista à Agência Brasil. “O risco de ocorrer fraude seria o mesmo se a empresa fosse estatal”, concorda seu colega do programa de MBA da Fundação Getúlio Vargas, professor Mauro Rochlin, que entretanto pondera, na mesma entrevista: “Sendo o setor privado o produtor, obviamente que o cliente, no caso o Estado brasileiro, terá que exigir uma série de garantias de que a operação vai ser absolutamente segura.” Eles estão certos. Mas trata-se de uma meia verdade do nosso caminho. A outra face desta mesma moeda está repleta de perguntas sem respostas. Por que se desfazer do que funciona, emprega, dá lucro e rende dividendos ao Estado brasileiro? Por que, em curto espaço de tempo, decidir um desmonte que consumirá recursos e energia em concepção de modelagem, editais internacionais, desgaste político? Por que passar adiante a empresa que produz um passaporte internacionalmente respeitado como documento seguro? “Do ponto de vista fiscal, a venda da empresa é irrelevante. Se é que vai aparecer alguém para comprar”, comenta o funcionário de carreira. A dúvida se explica. Afinal, a Casa da Moeda é um negócio que envolve um par que industrial gigantesco, de manutenção cara, que a despeito de atualizado, com máquinas modernas, é de uma concepção antiga, refém de velhas rotinas e de velhas mentalidades. Sob o argumento da segurança, é uma empresa fechada, a serviço do BC. Para o bem e para o mal. Além da planta industrial em Santa Cruz, mantém um andar inteiro, o 19º, em um prédio de escritórios na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro. E quem levar o bônus, leva também o ônus, que inclui um passivo ambiental incalculável, um fundo de pensão de empregados — o Cifrão — deficitário desde o ano 2000 e dívidas trabalhistas que correm na Justiça. Em meio ao silêncio surdo que cerca a Casa da Moeda, o presidente do Sindicato dos Moedeiros é a voz que sai em defesa da empresa: “O governo Temer não tem legitimidade para se desfazer de um ativo público. A população não votou nisso. A proposta de redução do Estado era do candidato derrotado. A Casa da Moeda poderia até não dar lucro, dada a importância de seu papel estratégico, de garantir a soberania monetária, mas é fato que a empresa vem dando lucro ao longo de sua história, uma história de 323 anos que não pode ser desfeita sem consulta à sociedade.”
ENTREVISTA JOAQUIM DE MELO COORDENADOR DO INSTITUTO PALMAS
FLAVIA CAVALCANTI
Há duas décadas, os moradores do Conjunto Palmeira, na periferia de
Fortaleza, no Ceará, viviam em uma situação de extrema pobreza, sem água
tratada, esgoto e luz elétrica. Vinte anos depois, a realidade é outra, graças à
criação do Banco Palmas, o primeiro banco comunitário do país. O que mudou? Como
vivem hoje os moradores do Conjunto Palmeira? Do ponto de vista econômico, investimos milhões de reais para ações produtivas. Só nos últimos sete anos, R$ 14 milhões para 5.600 empreendimentos, 84% de mulheres. Centenas de milhares de "palmas" (moeda social criada para uso local) emprestados para apoiar o consumo local, sem juros. Milhares de pessoas abriram sua primeira conta, acessaram seu primeiro seguro de vida e receberam formação em educação financeira. Em 20 anos, 3.500 postos de trabalho foram gerados e aumentou em 60% a venda no comércio local.
Quais são as formas de financiamento que o Banco Palmas adota? E o
perfil dos tomadores? As mulheres têm peso importante? Quanto ao perfil dos tomadores de crédito, 85% são mulheres e 95% têm renda familiar abaixo de três salários mínimos.
É preciso se ter claro que o Brasil tem um problema sério com a conectividade, e são milhares de territórios que não contam com sinal de internet. Além disso, as pessoas com mais de 40 anos têm dificuldade de fazer transações financeiras pelo celular ou internet banking, quer pela pouca habilidade com as tecnologias digitais, quer por desconfiança na segurança do sistema. O que temos visto são centenas de municípios e milhões de brasileiros sem alternativa financeira e bancária em nome de um “avanço tecnológico” que, se não bem aplicado, agrava a desigualdade e a pobreza.
Muitas vezes, por conta da dificuldade de acesso à rede, o banco disponibiliza internet gratuita em sua sede, de forma que as pessoas vão até lá para se conectar e realizar suas operações pelo celular. Assim, optamos por um modelo que é ao mesmo tempo digital e presencial. Os bancos comunitários têm evoluído em tecnologia, mas com o cuidado e muita solidariedade com os milhões de brasileiros que ainda não utilizam o sistema digitalizado.
O aplicativo pode ser baixado normalmente na play store, tanto por usuários como comerciantes. Contudo, circula localmente em cada território de um banco comunitário. Essa circulação local e o controle da comunidade dão ao dinheiro eletrônico a funcionalidade de “moeda social digital”. O esquema funciona nacionalmente, mas cada banco comunitário anima sua rede local, cadastrando na plataforma usuários e formando uma rede credenciada de comércios locais. Toda vez que um usuário compra na comunidade, utilizando a plataforma, é cobrada uma taxa de 2% ao comerciante. Essa taxa retorna para o banco fazer operações de crédito para os produtores locais e, também, ajudar na sua sustentabilidade. Os comerciantes podem fazer saques no banco comunitário, ou transferir (via plataforma) sua moeda social digital para qualquer banco comercial do país. Quando isso acontece, o depósito no banco comercial é realizado em reais.
não trazem lucro. Cada dia mais, os bancos comunitários têm se instalado em locais abandonados pelas instituições tradicionais e recebido “clientes” que foram banidos desses bancos. Com a plataforma digital E-dinheiro, esse alcance aumentou bastante, porque as pessoas podem se associar ao banco, mesmo à distância, bastando baixar a plataforma e escolher o estabelecimento e comparecer, a cada bimestre, a uma reunião presencial, a fim de criar laços de solidariedade com os outros associados.
Portanto, todas as propostas que buscam novas formas e parâmetros de análise de crédito, diferentemente dos modelos tradicionais, se aproximam dos bancos comunitários e têm muito a contribuir.
mesmo assim isso representaria inadimplência de 6% (porque seis não pagaram em dia). E esse banco seria considerado de “má gestão creditícia”. Ora, para os bancos comunitários, esse quadro representa uma excelente operação de crédito, tendo em vista as condições financeiras dessas famílias e os resultados que foram alcançados. Para o Banco Palmas, o tomador de crédito fica inadimplente após 12 meses. Desde que ele esteja se relacionando com o banco, explicando a situação que o levou a não pagar a parcela do crédito, participando das reuniões, nós consideramos que essa pessoa encontra-se em dificuldade, mas não é inadimplente, por isso não terá seu nome negativado. Os pobres enfrentam dificuldades porque suas finanças estão sempre “no limite”. Portanto, temos de ter paciência e instituir outros padrões de análise de inadimplência.
A redução da inadimplência é feita através do diálogo permanente com os tomadores, reuniões bimestrais no banco e uma política de redes locais de "prossumatores", onde o próprio banco comunitário consegue “clientes” para comprar as merca dorias produzidas pelos tomadores de crédito. Trimestralmente, o Banco Palmas promove um feirão, priorizando barracas para clientes inadimplentes, oferecendo oportunidades para que eles vendam seus produtos e se restabeleçam financeiramente. Portanto, estamos diante de um banco de novo tipo, volta- do para o desenvolvimento da comunidade e o bem-estar das pessoas. Não basta que o tomador de crédito pague a parcela em dia, o banco também é responsável e se preocupa se ele está conseguindo melhorar de vida, aumentar sua inclusão socioeconômica, caminhando para o bem-viver.
Os bancos comunitários têm taxas de juros variadas (de 1% a 3% ao mês), que permitem aos pequenos tomadores pagar menos juros e aos grandes, juros mais altos. É crédito evolutivo com juros evolutivos. Quanto menos dinheiro você pegar do banco, menos juros você paga; quanto mais dinheiro, mais juros. Dessa forma, distribuímos renda e enfrentamos a desigualdade. Em caso de inadimplência, a negociação é bem diferenciada, dependendo da situação financeira e social de cada cliente. O spread é o menor possível, suficiente apenas para garantir a sustentabilidade do banco comunitário, sem objetivar lucro. Afinal, ele não existe para “ganhar dinheiro”, e sim para promover o desenvolvimento local.
Vivemos, atualmente, a hipocrisia das reformas da Previdência e trabalhista, enquanto não se toca no problema maior que é taxar, de forma contundente, as grandes fortunas, o capital especulativo, as grandes heranças.E criar uma carga tributária diferenciada, dependendo do porte financeiro de pessoas e empresas. Urge, como extrema necessidade, que se enfrente a questão das grandes fortunas, que passam de pai para filho de forma especulativa e eterna, para podermos desenhar qualquer possibilidade de justiça social no país. É impossível se conceber que os pequenos produtores do Conjunto Palmeira paguem impostos iguais (ou superiores) às grandes indústrias. É impossível se conceber que, quando um produtor no Conjunto Palmeira fabrica um detergente, um sabonete, uma roupa, um par de sapatos, pague o mesmo imposto que as grandes multinacionais e os grandes conglomerados empresariais. A injustiça fiscal é terrível e faz o Brasil se tornar uma casta, onde pobre morre pobre e rico fica cada vez fica mais rico. É evidente que, em algum momento, essa brutal desigualdade, geradora de tanta violência, vai levar o país a uma implosão social. Teremos convulsões insuportáveis. Basta olhar o que está acontecendo nas periferias do Brasil com o avanço do tráfico, o aumento da pobreza, o genocídio da juventude, o colapso dos serviços públicos. Estamos diante da barbárie.
Contudo, há de se pontuar que muitas cooperativas já não exercem mais suas características originárias e perderam o espírito cooperativista. A rede de bancos comunitários diferencia as cooperativas do campo popular e solidário das cooperativas capitalistas, que objetivam somente o lucro. Talvez a maior diferença dos bancos comunitários para as cooperativas seja o fato de não sermos fiscalizados pelo Banco Central. Isso garante a esses bancos maior liberdade de atuação, inclusive de criar critérios próprios para concessão de crédito, produtos financeiros diferenciados e adaptados aos mais pobres, liberdade para inovação financeira e bancária. Outra diferença é que os bancos comunitários não estão obrigados a obter lucro e as cooperativas de crédito, sim. A desvantagem maior é que, pelo fato de não sermos cooperativa, temos mais dificuldade em captação de recursos no mercado, e estamos impossibilitados de captação de poupança.
Ainda está sendo pouco utilizada, porque não é muito conhecida dos usuários. Com as oficinas de Cidadania Financeira Digital que estamos realizando, esperamos que essa ferramenta cresça bastante em 2018. Ensinamos que é melhor guardar o dinheiro e comprar à vista, com desconto, do que a prazo, por um preço maior.
É só querer! Agora, em 2018, vou mandar outra carta para o ministro, com um abaixo-assinado de 10 mil aposentados dizendo que querem receber pelo E-dinheiro.
Concentração Bancária SEGUNDO DADOS DO BC, OS QUATRO MAIORES BANCOS DO BRASIL CONCENTRAM 78,65% DO MERCADO DE CRÉDITO. SEM CONCORRÊNCIA, ELES AUMENTAM SEUS LUCROS APESAR DA QUEDA DA TAXA SELIC.
JEFFERSON GUEDES
A redução das taxas de juros é uma reivindicação antiga de vários setores da sociedade. Afinal, todo mundo sabe que a retomada do crescimento é praticamente impossível sem que haja crédito mais barato que permita o investimento e a geração de empregos. Sendo assim, o sonho de consumo de todas as torcidas era ver a Selic retornar ao piso de novembro de 2012, quando a taxa foi fixada em 7,25% —até então, o menor patamar da série histórica do Copom iniciada em junho de 1996. Pois bem, o dia 6 de dezembro de 2017 veio, em tese, ao encontro dessa expectativa. Nessa data, o Copom promoveu o décimo corte consecutivo da Selic, levando a taxa básica de juros à mínima histórica de 7%. Apesar disso, não houve a festa que se imaginava. Por quê? Em vez de comemoração, um sentimento de perplexidade ecoou em toda a mídia. Por que os juros dos bancos não caem na mesma velocidade? Enquanto alguns economistas insistem que a explicação está nas taxas de risco, na inadim plência, nos impostos e no recolhimento compulsório, aos poucos, ganha espaço uma avaliação que a Por Sinal faz há bastante tempo: não se pode discutir a questão dos juros altos sem analisar o aumento da concentração bancária. É verdade que a recessão afetou a saúde das empresas e o aumento dos
calotes contribuiu, evidentemente, para a elevação do custo do crédito
empresarial. Ainda que essa lógica também se aplique ao crédito para pessoas
físicas, não justifica o fato de continuarem com taxas estratosféricas mesmo
em um cenário de redução gradual da inadimplência, desde 2012. Em outubro
passado, segundo o Banco Central, a taxa média no crédito pessoal, por exemplo,
estava em 132% ao ano para uma inadimplência de 8%. Já em novembro de 2012, com
a Selic a 7,25% ao ano, o juro no crédito pessoal estava em 66,3%, bem abaixo
dos níveis atuais, mesmo com a inadimplência sendo maior, de 8,8%. A FORMAÇÃO DO SPREAD Ou seja, definitivamente, o problema dos juros altos não pode ser resumido à inadimplência. O professor João Sicsú, que foi diretor de Políticas e Estudos Macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2007 e 2011, questiona inclusive o peso que se dá à inadimplência na composição do spread bancário. O primeiro questionamento está nas diferentes abordagens utilizadas para realizar o cálculo do índice de inadimplência. Isso porque o conceito que os bancos adotam para inadimplência (do Acordo de Basileia II), não se limita aos casos em que a instituição considera totalmente improvável que o devedor honre suas obrigações. “Atrasou o pagamento por mais de 90 dias conta como inadimplência também”, explica. É por este motivo que Sicsú entende que o índice de inadimplência é superestimado. O outro fator, que bem poderia fazer parte de uma obra de Kafka, é que fre quentemente o tomador de empréstimo financia a própria inadimplência. Isso acontece quando os bancos fazem o empréstimo com a venda casada de um seguro que garante à instituição financeira receber o recurso caso o cliente não pague do Banco Mundial. No México, a segunda economia da América Latina (atrás ape nas do Brasil), os cinco maiores bancos controlavam 70% do mercado naquele ano. No Chile, 67%. A média mundial de concentração bancária, segundo o FMI, é de 40%. O Brasil,
com seus 72,98%, seria um dos maiores exemplos de concentração no mundo. É
verdade que o país não chega a ser uma exceção, já que Canadá, França e Espanha
também apresentam níveis elevados de concentração. Nesses países, a participação
dos três bancos líderes supera 60% dos ativos do setor. CRÉDITO ESCASSO O problema é que a concentração bancária no Brasil tem desdobramentos bastante perniciosos à economia. Segundo dados divulgados pelo mesmo Relatório de Estabilidade Financeira do BC, os quatro grandes bancos concentram 78,65% do mercado de crédito. Ou seja, o grupo empresta cerca de R$ 4 de cada R$ 5 disponíveis para empréstimos. Não é preciso ser um gênio da economia para saber que não faz bem para o país tamanho nível de concentração da oferta de crédito. Se olharmos os exemplos mundiais, seria incorreto dizer que concentração bancária é sinônimo de juros altos. Mas, entre nós, a concentração joga contra os clientes, que ficam sem opções para barganhar e procurar outro banco. A questão da portabilidade, inclusive, foi um complicador no primeiro semestre de 2012, época em que a presidente Dilma Rouseff utilizou os bancos públicos para forçar a queda dos juros e spreads. “A iniciativa foi positiva, houve temporariamente uma redução dos juros que chegou a fazer um pequeno incômodo no mercado”, avalia Ione Amorim, economista do Idec. O problema, a seu ver, é que havia barreiras para a portabilidade de crédito. Isso dificultava, por exemplo, a transferência para o BB de uma dívida assumida por um cliente do Itaú. Por conta disso, era mais difícil para o consumidor aproveitar a maré dos juros mais baixos nos bancos públicos. As barreiras contra a portabilidade de crédito foram removidas em dezembro de
2013 com a Resolução 4.292, editada pelo Conselho Monetário Nacional. Só então o
governo fixou novas regras para o funcionamento da portabilidade de crédito
para pessoas físicas. Ocorre que a Resolução veio em um momento em que as taxas
de juros já estavam em tendência de alta. O erro do governo Dilma, segundo Ione
Amorim, foi justamente não casar a redução dos juros com regras mais flexíveis
para a portabilidade. A ATUAÇÃO DO BC Avaliar o papel do Banco Central no crescimento da concentração bancária exige tanto uma análise conjuntural quanto estrutural. Quando se recua à época do Plano Real, observa-se que o BC contribuiu para a concentração bancária, por exemplo, ao aprovar a venda do Bamerindus ao HSBC, em 1997. A atitude desagradou aos 600 acionistas minoritários do Banco Bamerindus, que juntos totalizavam 3,4 milhões de ações. Esse grupo, inclusive, deu carta branca para que uma equipe de advogados entrasse na Justiça contra o Banco Central. O HSBC, além de receber generosos recursos do governo para assumir o controle do Bamerindus, mais tarde transferiu toda sua atuação no Brasil para o Bradesco, recebendo US$ 5,2 bilhões por isso. Ainda na era FHC, o Banco Central foi favorável à progressiva liquidação dos bancos estaduais, seguindo a lógica neoliberal de privilegiar o fortalecimento dos bancos privados. Se tivessem refletido sobre a realidade americana, onde ainda existem bancos regionais funcionandoa dívida. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), referência fundamental na luta pelos direitos dos cidadãos, denunciou essa venda casada em 2014. Na época, os seguros eram embutidos nos contratos de empréstimo pessoal sem autorização prévia do consumidor. Hoje, o cidadão é informado da existência do seguro. Mas não tem como abrir mão dele. Num cenário como esse, não é de se estranhar que o último Relatório de Estabilidade Financeira do Banco Central tenha concluído que os bancos tiveram um aumento da sua resiliência. Apesar de estarem cada vez mais fortes, os bancos seguem mantendo a restrição ao crédito mesmo tendo mais instrumentos para fazer frente à inadimplência. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) defende a tese de que o país tem erros regulatórios e legais que impedem a queda do spread. A entidade inclusive contratou um estudo junto à consultoria Accenture para provar que o Brasil demanda o maior percentual de custo de provisão para devedores. Em entrevista à Míriam Leitão, colunista do jornal “O Globo”, o presidente da Febraban, Murilo Portugal, reconheceu que o nosso sistema bancário é concentrado, mas acrescentou que concentração não leva, necessariamente, à falta de competição. Mas será que os bancos têm alguma razão para baixar suas taxas, já que praticamente não existe concorrência no sistema bancário brasileiro? Os números não mentem a este respeito. Em 2007, Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica e Itaú Unibanco detinham, juntos, 52,58% de todos os ativos financeiros. Dez anos depois, os grandes players do mercado controlam 72,98% de todos os ativos. É o recorde histórico da concentração bancária no país. A título de comparação, os quatro maiores bancos americanos detinham, em 2015, 42% do total do mercado, conforme levantamento como bancos de varejo, provavelmente seguiriam outro caminho. Deixando de lado o passado, o que tem feito o BC nos dias de hoje para en frentar a questão da concorrência bancária? A atuação da autarquia vem sendo bastante questionada, inclusive no Congresso, por ser tímida demais e não oferecer medidas efetivas que levem ao aumento da concorrência entre os bancos. Na última audiência realizada na Câmara em 2017, o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, relativizou a concentração bancária brasileira e afirmou que ela se compara àquela observada em muitos países europeus. Visivelmente, Goldfajn fez este recorte mirando França e Espanha, ignorando a avaliação crítica do FMI, que não vê com bons olhos a concentração bancária sempre que um país supera a média mundial. Há outro fator que obriga a relativizar qualquer comparação com França e
Espanha: a relação crédito/PIB, que compara a pujança da economia com o volume
de crédito disponível. A média mundial está na casa de 130%. Entre os
países-membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE), que inclui França e Espanha, a relação crédito/PIB está na casa dos
147%. No Brasil, esta relação é de apenas 48,6% do PIB. Então, mesmo que França
e Espanha tenham elevados graus de concentração bancária, como o Brasil, nesses
países a oferta de crédito é bem maior. TÍTULOS INDEXADOS O crédito escasso é facilmente explicável. Em vez de fazer negócios com seus clientes, os bancos brasileiros preferem comprar papéis do governo atrelados à Selic. Isso cria um link desnecessário entre as necessidades de refinanciamento da dívida da União e a dinâmica das empresas e das famílias. Segundo dados do Tesouro, a participação dos títulos vinculados à Selic saltou de 22,8% da dívida, em 2015, para 28,2%, em 2016. Para 2017, o Tesouro trabalha com uma participação desses papéis de no mínimo 29% do total da dívida. “Em nenhum lugar do mundo a taxa básica de juros indexa a dívida pública”, afirma João Sicsú. Ele lembra que o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apresentou, em 2011, o Projeto de Lei 529 para vedar a emissão de títulos da dívida pública remunera dos pela Selic e por taxas de câmbio. A mudança, se aprovada, não entraria em vigor imediatamente, pois haveria prazo de dois anos até que não houvesse títulos atrelados à Selic. Mesmo assim, a iniciativa do senador está parada na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado desde 13/12/2016. Isso não chega a surpreender. Afinal, o governo e o BC parecem seguir outros caminhos para fomentar a concorrência bancária. Em julho de 2017, por exemplo, entrou em vigor a norma que segmentou o sistema e adotou requerimentos regu latórios proporcionais à complexidade e tamanho da instituição. Com isso, bancos menores devem seguir regras mais simples, o que teoricamente pode estimular a concorrência bancária. A medida faz parte da “Agenda BC+”, no pilar “Sistema Financeiro Nacional mais Eficiente”. Integram o rol de medidas a regulamentação da Letra Imobiliária Garantida (novo instrumento de financiamento ao mercado imobiliário), a criação do re gistro eletrônico de garantias para empréstimos, as consultas públicas para regulamentação de fintecs (empresas de base tecnológica que oferecem serviços financeiros, como crédito), a tramitação da proposta do novo cadastro positivo, o novo marco legal para punição de instituições financeiras e a implementação da polêmica TLP (Taxa de Longo Prazo), a partir deste ano. A TLP veio substituir a TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), que desde 1994 é usada nos contratos do BNDES para fomentar os investimentos privados com taxas mais baratas do que aquelas praticadas pelos bancos comerciais. A TLP sinaliza o início de uma nova era no banco em que a instituição passa a receber cada vez menos subsídios da União. Ao contrário da TJLP, que era definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), a TLP vai gradualmente se igualar à taxa de mercado, tomando como base um dos títulos da dívida pública. Com isso, o custo dos empréstimos do BNDES aumentará sempre que as taxas de juros de mercado subirem. Para o presidente do BC, a TLP vai democratizar a taxa de juros no Brasil. Goldfajn avalia que a TLP vai liberar espaço no orçamento público e promover o uso mais eficiente dos recursos de crédito disponíveis na economia. Já aqueles que são contrários à substituição da TJLP pela TLP argumentam que as taxas reais de juros no país continuam altíssimas. Sem a alternativa do crédito subsidiado, o BNDES praticamente se iguala aos agentes privados. Com isso, o poder de fogo dos bancos na área de crédito será absoluto. Em vez de democratizar a taxa de juros no Brasil, a TLP pode contribuir para aumentar ainda mais a concentração bancária. É verdade que a transição entre a TJLP e a TLP será gradual, e só estará concluída em cinco anos. Mesmo assim, já está havendo um processo de convergência entre as taxas do BNDES e os juros de mercado. Para o senador Lindbergh Farias, o argumento de que a TLP vai democratizar a taxa de juros é bastante questionável. A seu ver, o crédito subsidiado não é responsável pelas altas taxas de juros. Segundo Lindbergh, esse tipo de crédito existe jus tamente porque as taxas de juros sempre foram muito altas. “O governo culpa o crédito direcionado e não responsabiliza a alta concentração bancária e a formação de juros pelo cartel dos bancos”, critica. PROTAGONISMO Se o BC não tem uma ação contundente em defesa da concorrência no setor bancário, haveria um ganho para a sociedade se o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) fosse protagonista nesta questão? Em meados de 2000, veio a público uma divergência de opiniões entre Cade e o Banco Central acerca de qual dos dois órgãos teria competência legal para decidir sobre os atos de concentração envolvendo instituições bancárias. A controvérsia, até hoje não resolvida, tem complicadores na própria legislação. A Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994, também conhecida como Lei da Defesa da Concorrência, estabelece que o objetivo do Cade é julgar a questão concorrencial, buscando proteger o consumidor e as demais empresas que atuam no mercado. Cabe ao colegiado do Cade julgar a fusão, a incorporação ou alienação de qualquer dos participantes do mercado, não importando o setor econômico onde as empresas atuam. Já a Lei nº 4.595/1964, que criou o Banco Central, determina de forma explícita que a autoridade monetária concederá autorização às instituições financeiras para que possam ser transformadas, fundidas, incorporadas ou encampadas. O art. 18, §2º é ainda mais objetivo quanto à competência do BC em aplicar o direito antitruste no setor bancário: (...) §2º. O Banco Central do Brasil, no exercício da fiscalização que lhe compete, regulará as condições de concorrência entre instituições financeiras, coibindo-lhes os abusos com a aplicação da pena nos termos desta lei. O coração da controvérsia diz respeito à definição de competência para a análise e a aprovação de atos de concentração de instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional. Afinal, essa competência deve ser prerrogativa do Banco Central ou do Cade? Ou será que ambos poderiam atuar nestes casos, de maneira complementar? A polêmica entre o Cade e o BC teve um novo round no final do ano passado, com a indicação do advogado paraibano Walter de Agra Júnior para chefiar a Procuradoria Federal Especializada, responsável pela consultoria, assessoramento jurídico e representação judicial/ extrajudicial do Cade. Ao ser sabatinado no Senado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), Agra foi questionado pelo senador Fernando Bezerra Coelho (PMDB-PE) sobre a elevada concentração bancária no país. “Não está saltando aos olhos que o Cade deveria provocar o Banco Central para caminhar na direção de um sistema bancário mais descentralizado?”, perguntou o senador. O procurador-chefe do Cade lembrou o histórico conflito de competência com o Banco Central, mas ressaltou que não há razão para que ambos não trabalhem juntos. Foi uma atitude diplomática, já que em seguida ele defendeu a aprovação do Projeto de Lei do Senado 350/2015, do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG). A iniciativa, por sinal, expressa bem os interesses do Cade, pois altera a Lei nº 4.595/1964 e a Lei nº 12.529/2011, para definir, como competência do Cade, a defesa da concorrência no Sistema Financeiro Nacional. Ao mesmo tempo, o texto de Anastasia permite que o BC intervenha para decidir acerca de casos que acarretem algum risco sistêmico ao Sistema Financeiro Nacional. “O projeto está agora aqui na própria CAE, para que a gente possa readequar esse desvio”, lembrou o procurador. A relatora do projeto é a senadora Gleisi Hoffmann, que apresentou relatório favorável ao projeto. Cabe agora votação no âmbito da CAE e, depois, a votação em plenário, que deve acontecer este ano. Antes mesmo da votação do projeto do senador Anastasia, Cade e BC já estão interagindo. Foi criado um Grupo de Trabalho Cade/BC com a participação de quatro representantes de cada autarquia, com prazo para começar a funcionar até início de 2018, para realização de estudos sobre a defesa da concorrência no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, inclusive quanto à forma e aos limites de suas atuações. A parceria parece sinalizar uma “bandeira branca” entre as duas institui ções, que ainda têm pendências judiciais em aberto. Há quase 20 anos Cade e BC travam uma batalha, que já chegou ao STF, para saber a quem compete julgar atos de concentração bancária. O último movimento desse processo ocorreu em junho de 2016, quando o ministro Gilmar Mendes se declarou impedido de julgar ação do Cade que questionava a competência do BC. EM NOME DO CONSUMIDOR Do ponto de vista do Idec, quem teria mais condições de fiscalizar a concorrência bancária, o BC ou o Cade? “É uma pergunta difícil de responder”, afirma Ione Amorim. Ela entende que o Banco Central tem, claro, os instrumentos técnicos para avaliar a concentra ção bancária. Ainda assim, Ivone acredita que uma maior participação do Cade será relevante porque essa instituição teria “um olhar mais crítico” sobre operações de fusão, por exemplo. Em resumo, Ione defende um trabalho cooperativo entre as duas autarquias, solução que tem tudo para se consolidar. Independentemente de como será resolvida esta querela, Ione sustenta que há muito a fazer para que as instituições bancárias melhorem o atendimento e a oferta de serviços. Um exemplo: as ouvidorias dos bancos. Pesquisa do Idec divulgada em setembro, a partir dos relatórios das ouvidorias dos sete principais bancos do país —Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Itaú, Safra, Santander e Votorantim —, mostrou que esses relatórios não trazem informações básicas sobre o atendimento ao consumidor. Desde junho de 2016, a Resolução 4.433/2015 obriga as instituições financeiras a divulgarem informações semestrais sobre o desempenho de suas ouvidorias. O Banco Central, contudo, não define critérios para essa prática. Para a economista do Idec e responsável pela pesquisa, Ione Amorim, a maioria dos relatórios apresentados traz informações vagas e superficiais e, assim, não cumpre o papel de dar mais transparência à forma como a instituição trata as reclamações dos consumidores. Além disso, não há referências sobre as reclamações que são judicializadas. Ela tem enorme preocupação com o crédito rotativo: “Cada banco faz o que quer nessa área”, afirma. Para o economista João Sicsú, enfrentar a concentração bancária significa reduzir os seus efeitos perversos. Pragmático, ele não acredita em uma política de “desconcentração”, até porque esta é uma tendência mundial: concentrado, o sistema financeiro dá mais lucro. Agora, a existência de poucos bancos não significa necessariamente crédito escasso e juros elevados, como se vê no Brasil. O caminho para atenuar tudo isso, a seu ver, passa pela regulamentação do mercado e pelo fortalecimento dos bancos públicos. Só assim esses bancos poderão reorientar suas políticas, abaixar as taxas de juros e com isso ampliar a oferta de crédito. Há muitos exemplos neste sentido pelo mundo, tanto de regulação quanto de organização diferenciada dos agentes do sistema. A Alemanha com suas caixas econômicas, a Polônia com suas cooperativas de crédito, a China com seus sistemas descentralizados de gestão financeira. Aparentemente, há um abismo entre estes exemplos e a realidade brasileira. Espera-se que a desilusão provocada com a queda da Selic impulsione um movimento capaz de fazer frente aos absurdos gerados pela concentração bancária no Brasil.
Criptomoedas VALORIZAÇÃO DE MAIS DE 1.800% DO BITCOIN ACELERA DISCUSSÃO DO BC E DA CVM SOBRE REGULAMENTAÇÃO DOS ATIVOS DE ALTO RISCO. CARMEN NERY Preocupados com o crescimento desordenado das criptomoedas, usadas para investimentos de alto risco, o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários estão, finalmente, dando sinais de que poderão impor regras para coibir golpes e fraudes na compra e venda de ativos tão valorizados. Em 29 de novembro, a principal moeda, o bitcoin, ultrapassou, pela primeira vez, a barreira dos US$ 10 mil, batendo, horas depois, US$ 11 mil. Esse feito ligou o sinal de alerta dos mercados financeiros de todo o planeta. Em 2017, a moeda acumulou alta de mais de 1.800%, tendo iniciado o ano valendo US$ 968,23, para ultrapassar US$ 18 mil em dezembro. Com volatilidade crescente, no mesmo mês a moeda iniciou uma subsequente trajetória de queda até voltar ao patamar de US$ 10 mil em meados de janeiro de 2018. A alta pode ter sido provocada pelo anúncio, em 1º de dezembro, pela Bolsa de
Mercadorias e Futuros de Chicago, de que passaria a aceitar contratos futuros
com essa moeda, a partir do dia 18. A Nasdaq já havia anunciado a mesma intenção
em 29 de novembro, prevendo lançar contratos futuros logo no início de 2018. A
moeda estreou na Chicago Board Options Exchange (CBOE), em 11 de dezembro, com o
contrato subindo mais de US$ 3 mil e fechando acima de US$ 18 mil. Uma semana
depois na Chicago Mercantile Exchange (do grupo CME), o contrato futuro da moeda
digital para janeiro teve preço inicial de US$ 20.650. MERCADO AGITADO Mas não só de altas e novos contratos vive esse mercado que, por conta da extrema volatilidade, poderá pôr em risco compradores desavisados. Não é à toa que, a cada dia, cresce o temor de que uma grande e definitiva bolha exploda e produza danos irreparáveis. Por enquanto, o bitcoin vem sobrevivendo a bolhas de menor impacto, embora os números confirmem a instabilidade desse mercado e o perigo de ele funcionar sem qualquer tipo de regulamentação. A primeira bolha estourou em 2011, quando a criptomoeda despencou de US$ 150 para US$ 2 por falha no protocolo, voltando a subir para US$ 200 no final daquele ano. Em dezembro de 2013, a empresa japonesa MTGox foi “hackeada” e perdeu US$ 500 milhões, derrubando a moeda, de US$ 1.250 para US$ 150, voltando a se valorizar a US$ 1.000, um ano depois. Em maio de 2016, o bitcoin já havia caído para US$ 750 e chegou a US$ 450, devido ao efeito Bitsinx, outra trade “hackeada”, que perdeu US$ 75 milhões. Após seis meses, a moeda atingiu novamente US$ 1.250, até iniciar a escalada de 2017, quando terminou dezembro no pico de US$ 18 mil. “Minha aposta é que o bitcoin estará valendo R$ 100 mil (US$ 30 mil) em dezembro de 2020. O caso Bitsinx é interessante porque a empresa perdeu 30% de seus ativos, mas pagou todo mun
do pelo valor médio, convertendo a perda em tokens da dívida, e oito
meses depois todos foram ressarcidos. Isso mostra a maturidade do mercado”,
argumenta Rocelo Lopes, CEO da CoinBr, a maior plataforma de venda de bitcoins
da América Latina. Na outra ponta, preocupada com os direitos do consumidor, a
economista Ione Amorin, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (Idec), lembra que no mundo inteiro as autoridades estão enfrentando
o mesmo questionamento sobre a necessidade de se estabelecer uma regulamentação.
“É impossível ter uma moeda circulando sem nenhum lastro, que não traz nenhuma
segurança jurídica na sua emissão e na sua movimentação e tem todo um ambiente
propício à lavagem de dinheiro”. Ione observa que as moedas soberanas tradicionais, ainda que não sejam mais lastreadas no ouro, têm a emissão
sobre o controle dos bancos centrais. Não é o caso da moeda digital. “Hoje ela
tem um valor e de repente sofre uma variação, em percentuais extremamente fora
de lógica, de forma que não se consegue ter previsibilidade da variação dessa
rentabilidade.” Segundo a economista, o Idec tem feito o monitoramento, até pela
semelhança, das moedas digitais com as pirâmides financeiras. Há ainda o fato
de que as corretoras podem sofrer ataques cibernéticos. Sem falar que o
anonimato favorece o pagamento de transações ilícitas. “O consumidor precisa
ter ciência do que está adquirido e dos riscos a que está sendo exposto”,
alerta. DEBATE NO CONGRESSO No Brasil, a disparada do bitcoin no último trimestre de 2017 provocou uma reviravolta nas discussões da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que analisa o Projeto de Lei 2.303/2015, de autoria do deputado Áureo Lídio (SD-RJ), que quer colocar as moedas digitais sob a supervisão do Banco Central. O parlamentar, entusiasta da inovação que envolve o ecossistema das moedas digitais, das plataformas de blockchain e das startups que dela se beneficiam, já havia indicado que o texto final do relatório defenderia um modelo de regulação mais liberal, semelhante ao adotado por Cingapura. Só que, com a especulação em torno da moeda no último trimestre, alguns deputados da Comissão recuaram e passaram a defender regras mais rígidas para conter a ameaça de uma bolha especulativa. Até o início de dezembro, a Comissão estava rachada e o relator, deputado Expedito Netto (PSD-RO), acabou elaborando um parecer recomendando a proibição da moeda em território nacional, bem como sua comercialização, intermediação e mesmo aceitação como meio de pagamento para liquidação de obrigações no país. Após a leitura do parecer, foram realizadas cinco sessões para apresenta ção de emendas. A estratégia do autor do projeto, deputado Áureo Lídio, é rejeitar o relatório e trabalhar na elaboração de novos textos para serem colocados em votação. Ele continua defendendo que a legislação brasileira seja pioneira no Mercosul, criando condições para que esse mercado se ajuste e garanta tranquilidade ao investidor que quer fazer transações em criptomoedas no território brasileiro. Para isso, o primeiro passo é o reconhecimento da moeda digital como um ativo. Ele critica o fato de haver conflito entre as autoridades monetárias brasileiras. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e o BC não reconhecem o bitcoin como moeda, enquanto a Receita Federal já obriga a declaração das moedas digitais no Imposto de Renda. “O Banco Itaú comprou a corretora digital XP Investimentos, que está se pre parando para iniciar uma operação de criptomoedas. O Banco do Brasil anunciou, em um evento em São Paulo, que vai entrar no mercado de moedas digitais. Nós não queremos taxar nenhuma criptomoeda, porque isso atrapalha o mercado, mas queremos o reconhecimento. O BC tem de entender que o mercado está mudando, com transações milionárias em moedas digitais”, argumenta o parlamentar. A Comissão Especial realizou seis audiências públicas, ouvindo represen tantes do BC, CVM, Coaf, Receita Federal, Procuradoria da República, bancos, corretoras de moedas digitais (exchanges) e especialistas. Áureo informa que, durante seu depoimento, os representantes do BC e do Coaf disseram ter criado grupos de trabalho a fim de estudar a tecnologia, o que para ele é muito pouco, considerando a velocidade do processo.“Não pode o BC dizer que está estudando, e o BB anunciar que vai lançar exchange para transacionar com criptomoedas. A CVM está mais adiantada e no caminho certo”, elogia o deputado. NOVOS ATORES A XP Investimentos contratou, da exchange Foxbit, o especialista João Paulo Oliveira para ajudar a estruturar a operação de criptomoedas. Segundo informações de mercado, a empresa estaria se preparando para lançar o primeiro produto no início deste ano. Isso representaria a entrada de um grande banco (Itaú) nesse segmento. “Estamos estudando o mercado, porque a demanda e o interesse de nossos clientes por informações confiáveis são enormes, há muito ruído. Vamos ver onde faz sentido atuar. Quando participei da audiência da Câmara, em 5 de julho, deixei claro que a regulação pode ser positiva quando esclarece e reduz incerteza, e negativa quando traz custos desnecessários e onera a operação”, diz Fernando Ulrich, economista-chefe de blockchain e criptomoedas da XP Investimentos. Ele elogia a Receita por já ter esclarecido sobre a incidência de ganho de capital nas operações de compra e venda de moedas digitais. Destaca, também, o fato de o BC ter informado em nota que é lícito usar moedas digitais para pagamentos de bens e serviços. Buscando pôr fim aos litígios que vem enfrentando com grandes bancos que têm tentado encerrar suas contas em função dos altos volumes transacionados, a CoinBR defende uma regulação conservadora, sugerindo que o BC obrigue as corretoras a fazerem depósitos compulsórios, como os bancos; que todas sejam reguladas pela autoridade monetária; e que sejam cobrados impostos para o país ter reservas em criptomoedas. Segundo o CEO Rocelo Lopes, o que incomoda os bancos é o modelo de negócio que a CoinBR oferece — uma espécie de carteira digital ou conta corrente em criptomoedas. A transação é simples, sem exigir qualquer tipo de documentação dos clientes bancários. Eles apenas cadastram um e-mail na plataforma e fazem transferência de reais para a conta bancária da CoinBR; esta credita o valor na conta do cliente na plataforma, e ele decide a moeda que quer converter. “O fato de não exigir documentação é o que mais deixa o regulador ressabiado. Mas se o usuário fez uma transferência de R$ 1 milhão para a minha conta, os bancos é que são responsáveis por verificar a origem do dinheiro, não eu! Se o Itaú acha que o Santander não está fazendo o trabalho de compliance e verificação do cliente, que reclame no Banco Central. Os responsáveis por validar os depósitos e as transferências são os bancos”, argumenta Lopes, que não admite que sua empresa esteja transferindo para os bancos a responsabilidade de verificação de lavagem de dinheiro. Ele ressalta que o Coaf já definiu um protocolo para depósitos acima de R$ 10 mil e há uma série de regras de compliance que os bancos devem seguir. Lopes alerta, ainda, que as corretoras startups, que guardam os dados dos clientes, não estariam investindo o necessário em segurança para proteger esses dados. “Uma infraestrutura de proteção de dados é muito cara, e o que está sendo investido é muito pouco”, observa.
ENTREVISTA MARIO BERGARA PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL DO
URUGUAI Dando sequência às entrevistas com presidentes de bancos centrais da América do Sul, que têm como intuito conhecer mais de perto a dinâmica encontrada pelos nossos vizinhos continentais para levar adiante sua economia nacional, o encontro desta edição é com Mário Bergara, presidente do Banco Central do Uruguai. Considerado pelo Banco Mundial como país que se destaca por ser uma sociedade igualitária e pela alta renda per capita, baixo nível de desigualdade e pobreza e quase total ausência de indigência, o Uruguai é um dos primeiros lugares na região, de acordo com vários indicadores de bem-estar, como o Índice de Desenvolvimento Humano, o Índice de Oportunidades Humanas e o Índice de Liberdade Econômica. O bom desempenho econômico, com um crescimento anual médio de 4,54% entre 2003 e 2016, permitiu que o país suportasse os choques externos sem grandes oscilações, o que possibilita vislumbrar um futuro venturoso. Esperamos que a conversa com o presidente do BCU seja proveitosa, especialmente neste momento onde as incertezas econômicas se apresentam no cenário brasileiro e mundial.
Como o senhor analisa o atual cenário econômico mundial em termos de
estabilidade, após a crise de 2008 nos Estados Unidos e, em particular, nas
economias dos países da América do Sul? O que devemos esperar para o futuro
próximo? O cenário econômico global está determinado por uma grande incerteza. Embora as economias avançadas tenham conseguido retomar o crescimento econômico e se afastar do risco de deflação, quase uma década após a crise, subsistem elementos que continuam a gerar dúvidas sobre o funcionamento econômico, especialmente em relação aos mercados financeiros. Esses elementos são de natureza econômica e política: temas como a integração econômica (questionando até mesmo a permanência nos blocos econômicos já formados, como no caso da União Europeia), o protecionismo comercial ou a política monetária e fiscal estão em pauta, sem que se perceba uma solução clara para os mesmos. Essa falta de clareza se reflete na persistência de uma grande incerteza nos mercados, o que obriga nossas economias a gerenciar esses riscos com muito cuidado.
Em primeiro lugar, deve-se notar que o sistema financeiro local está estável e opera normalmente. Nesse sentido, parece capaz de facilitar o desempenho atual e futuro da economia, bem como gerenciar os riscos que poderiam afetá-lo. Os indicadores de solvência, liquidez, risco de taxa de câmbio implícita, crédito e inadimplência do setor bancário são bons, embora este último tenha piorado ligeiramente, como corolário da desaceleração econômica dos últimos anos. A curto prazo, as principais preocupações estão concentradas na evolução do crédito bancário e da inadimplência, particularmente no setor agropecuário. Também a rentabilidade dos bancos demonstrou estar estruturalmente baixa, o que poderia levar à maior concentração do mercado. Em uma visão de médio prazo, o mencionado processo de consolidação do setor bancário e o desenvolvimento sustentável de outros mercados, como o de ações e o de seguros de pensão, representam desafios para o sistema financeiro local. A incorporação de novas tecnologias aplicadas às finanças, conhecidas como fintechs, também implica desafios e oportunidades para o desenvolvimento, a regulamentação e a supervisão do sistema financeiro. Finalmente, a materialização de alguns eventos externos, como a volatilidade
dos mercados financeiros globais, a atividade das economias emergentes com as
quais o Uruguai mantém vínculos comerciais, bem como eventos geopolíticos,
poderiam ter um impacto sistêmico no mercado financeiro, e por isso esses riscos
são constantemente monitorados. Dadas as capacidades da economia doméstica e do
próprio sistema financeiro, esses riscos atualmente não constituem um sinal de
alerta para sua estabilidade. O sistema financeiro doméstico possui 11 bancos, sendo os três maiores responsáveis por 70% dos ativos do sistema. Este não é um elemento novo, e a concentração tem sido historicamente alta. Em particular, o Banco da República Oriental do Uruguai, de propriedade pública, concentra 43% dos ativos. Dadas as características do mercado no Uruguai, o atual nível de concentração não constitui um elemento de preocupação em termos de custos financeiros ou de graus de concorrência no mercado.
Após a crise de 2002, o Uruguai adotou um regime de taxa de câmbio flexível,
que não é definida pela equipe econômica, mas sim determinada pelo mercado.
Apesar disso, como nossas economias tiveram de coexistir em um contexto
mundial mutável e volátil, a política econômica procurou impedir que a
volatilidade financeira internacional fosse transmitida para o mercado de
câmbio local, razão pela qual decisões foram tomadas e recursos econômicos
atribuídos tendo como base fatores conjunturais. Por conseguinte, trata-se de
intervir no mercado de câmbio apenas para reduzir as volatilidades, sem tentar
contrariar fundamentos econômicos de corte mais estrutural. Em um regime de metas de inflação, como o adotado pelo Uruguai, a possível contradição entre ambos os objetivos depende do tipo de choque que a economia enfrenta. Da mesma forma, em uma economia pequena, aberta e parcialmente dolarizada, como a do Uruguai, existe a preocupação com o desempenho da taxa de câmbio, que, por sua vez, é determinado em grande parte pelos fluxos de capital. A preocupação com o mercado cambial é, por um lado, um elemento da política monetária e, por outro, um elemento de estabilidade financeira ou, de forma mais genérica, de gerenciamento de riscos macroprudenciais1. Portanto, a política econômica responde de forma conjunta, agindo através de seus instrumentos, para tentar modular os possíveis desvios dessas variáveis em relação aos seus níveis de equilíbrio. Por outro lado, a médio prazo, esses objetivos não são contraditórios. Uma inflação baixa, estável, e um sistema financeiro que opere em condições de estabilidade são condições para o crescimento econômico, ao reduzirem a incerteza para a tomada de decisão dos empresários. Esta visão é reconhecida no artigo 3º da Carta Orgânica do Banco Central do Uruguai (BCU), que afirma: “O Banco Central do Uruguai terá como principal objetivo (...) a estabilidade de preços que contribui para os objetivos de crescimento e emprego.” 1 Riscos inerentes ao desenvolvimento do sistema financeiro, e que não podem ser percebidos na estrutura das operações de bancos individuais. Daí a adoção de políticas de regulação que atuam diretamente sobre a restrição do crédito, via elevação das reservas bancárias, redução dos prazos de financiamento ou por meio de maiores exigências de capital próprio de cada banco. (N.T.)
De acordo com dados da segunda edição da Encuesta Financiera de Hogares Uruguayos — EFHU (Pesquisa Financeira de Lares Uruguaios) de 2014, 50% das famílias não possuíam conta bancária. Com o objetivo de universalizar o acesso aos serviços financeiros, de melhorar a eficiência do sistema de pagamento e promover a concorrência no sistema financeiro, em abril de 2014, o governo uruguaio aprovou a Lei de Inclusão Financeira. Entre os principais instrumentos contemplados nesse projeto, estão: contas bancárias e cartões eletrônicos gratuitos destinados aos trabalhadores, aposentados e beneficiários de planos sociais; crédito em folha de pagamento para trabalhadores ativos; programa de poupança jovem para a habitação; incentivos fiscais para a utilização de meios de pagamento eletrônicos e melhorias nas condições de acesso a eles; e a criação de uma nova figura regulada pelo Banco Central do Uruguai: as Instituições de Emissão de Dinheiro Eletrônico, que oferecem serviços de pagamento. Esse é um processo que o Banco Central do Uruguai facilita através da emissão de normas adequadas às novas rea lidades, que permitam o desenvolvimento saudável de agentes financeiros capazes de cobrir as diversas demandas de serviços financeiros da população. Tudo isso procura aumentar o nível e a qualidade dos serviços acessíveis à população. Três anos após a aprovação da lei, mudanças significativas já foram registradas no uso de métodos eletrônicos de pagamento, tais como cartões de débito, pagamentos móveis, expansão de serviços bancários on-line, entre outros.
A inclusão da educação econômica e financeira dentro da Carta Orgânica do BCU reflete seu compromisso com o assunto. O Banco Central do Uruguai, através do seu programa de educação econômica e financeira, o BCUEduca, fornece conhecimento e informação para compreender os conceitos econômicos e financeiros e facilitar a tomada de decisões na vida cotidiana. O programa tem como atividade central a Feira Interativa de Economia e Finanças (Fief), cuja cobertura populacional já atinge mais de 50 mil alunos de escolas primárias, secundárias, da Universidade del Trabajo del Uruguay (UTU) e de seus professores, em 33 edições realizadas em todo o país, desde 2011. É uma instância de aprendizagem interativa e ensino didático em temas de economia e finanças que, através de atividades lúdicas, vivenciais e experimentais, transmite a estudantes de todas as idades conceitos básicos sobre administração e planeja-mento no uso de dinheiro, na poupança e em melhores práticas para a tomada de decisões, entre outros. A inclusão oficial das questões econômicas e financeiras nos programas de estudo da educação primária e do segundo e terceiro ciclos do ensino médio e da UTU é objetivo prioritário do programa. Durante 2016, projetou-se o Programa de Capacitação Docente, a fim de viabilizar o guia “Economia e Finanças para Professores, um guia teórico-prático para educadores de crianças e adolescentes”, desenvolvido em 2015, além de estimular os professores a usá-lo na sala de aula. Esse guia foi desenvolvido no marco de acordos com a Administração Nacional de Educação Pública e a cooperação técnica do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). Tem acesso gratuito on-line, e oficinas de treinamento são realizadas sobre seu conteúdo, bem como sobre mudanças e melhorias para futuras edições. O site BCUEduca incorporou um fórum específico para professores que procura promover espaços de discussão e divulgação do guia. Ao mesmo tempo, as ações voltadas para adultos, grupos familiares e agrupações sindicais foram intensificadas, através da realização de oficinas sobre inflação, sistema financeiro e orçamento familiar. Por outro lado, também em conformidade com sua Carta Orgânica, a Superintendência de Serviços Financeiros do BCU atende às consultas, reclamações e denúncias de consumidores do sistema financeiro e promove sua proteção. Através do Portal do Usuário Financeiro, são fornecidas informações sobre produtos e serviços ou outras instituições do sistema financeiro. Inclui, ainda, uma seção especial de “consultas e denúncias”, na qual os usuários podem esclarecer dúvidas ou resolver uma situação irregular ou conflitiva com alguma das instituições supervisionadas.
A disseminação de informações e comunicações emitidas pelo BCU é orientada pelos princípios gerais de veracidade, oportunidade, clareza, transparência, igualdade e formalidade. Eles estão apoiados em um sistema oficial de porta-vozes para a opinião pública, através dos meios de comunicação, cujo exercício cabe ao presidente do Conselho de Administração, aos outros membros do órgão ou aos funcionários designados pelo presidente para tais fins. Trabalhamos de forma permanente, para que todos os agentes do mercado estejam conscientes dos mecanismos e práticas para a divulgação de informações importantes emitidas pelo BCU. No que diz respeito à divulgação da política monetária, o objetivo do BCU é que exista maior entendimento comum por parte de seus diversos públicos, visando aumentar a credibilidade e a transparência. Entende-se que a política monetária será mais eficaz se os atores entenderem os sinais oferecidos pelo BCU e qual é o efeito pretendido. A divulgação de ações de política monetária vinculadas ao Banco inclui duas instâncias de porta-vozes oficiais: os comunicados do Comitê de Política Monetária ou os do presidente do Conselho, ou quem este designe para tais fins. O processo de comunicação da política monetária é periódico, programado, sistemático e inclui todos os públicos da instituição.
A seleção de funcionários é realizada através de concursos abertos de méritos e antecedentes e de acordo com os regulamentos correspondentes. A promoção de funcionários também é feita através desse mecanismo. Por sua vez, o conselho de administração do Banco é composto por três membros nomeados nos termos do artigo 187 da Constituição da República, entre os cidadãos que, por conta de seus antecedentes pessoais, profissionais e de seu conhecimento da matéria, assegurem a independência de julgamento, a eficiência, a objetividade e a imparcialidade no desempenho de suas funções. Essa designação é responsabilidade do Poder Executivo e deve ser aprovada pelo Poder Legislativo. A remuneração dos empregados é estabelecida de acordo com uma escala de padrão único, resultante do acordo salarial coletivo dos bancos estatais.
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