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CARTA DO CONSELHO
Um ano que não vai deixar saudade
A esperada palavra da nova
autoridade monetária do Brasil chegou. Ilan Goldfajn conversou com a Por Sinal e
revelou seu posicionamento ante questões de estabilidade financeira e monetária,
bem como sobre o serviço da autarquia à sociedade, que vocês podem conferir com
exclusividade na entrevista desta edição.
As reformas que o governo trabalha para aprovar no Congresso, pouco debatidas
pela sociedade, ocupam o espaço principal da revista. A PEC 241, ora no Senado
sob o nº 55, é dissecada em detalhes para mostrar ao leitor as várias facetas do
novo regime fiscal que se pretende estabelecer, alertando a todos sobre os
riscos que traz ao desenvolvimento futuro do nosso país. O economista Ricardo
Piccoli, Especialista do BC e membro do Conselho Editorial da Por Sinal, assina
artigo sobre os reais efeitos da proposta parlamentar de modificação
constitucional.
Já a propalada reforma da Previdência, alçada como musa dos cortes de gastos
públicos, é avaliada por especialistas quanto aos prejuízos à melhor idade dos
brasileiros. A professora Denise Gentil é específica: “é um projeto que vai
trazer o aprofundamento da recessão no país e a deterioração das condições de
vida dos idosos de amanhã, que são os jovens de hoje.” Há desvio de finalidade
no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social? É certo que o Brasil
tem andado de marcha a ré nos dois quesitos desenvolvimentistas que dão nome ao
banco público. Você poderá conhecer mais sobre o BNDES nas paginas desta edição
e tirar as suas próprias conclusões.
A almejada cidadania financeira, pilar da ação do BCB, segundo Ilan Goldfajn,
enfrenta barreiras pela insuficiente presença bancária em muitos dos rincões
deste imenso país. Situação que é agravada pelo fechamento de postos de
atendimento nas localidades em que os bancos não contam com segurança adequada
para funcionar. Este preocupante quadro é analisado na matéria “Quem paga a
conta?”
Mais além do dinheiro, o professor Aldomar Santos, também Especialista do Banco
Central e integrante do Conselho Editorial da Por Sinal, reflete sobre as
reformas do ensino que tanta comoção e preocupação trazem a pais e estudantes.
Última edição de 2016, a Por Sinal chega aos leitores com a esperança de novos
tempos de um Brasil mais próspero e justo com seu povo, que esperamos
compartilhar com vocês.
A equipe da Revista Por Sinal deseja um feliz 2017 a todos. Boa leitura!
SINDICATO NACIONAL DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO CENTRAL (SINAL)
CONSELHO NACIONAL BIÊNIO 2015/2017
Presidente
Daro Marcos Piffer
Belém
José Flávio Silva Corrêa
Brasília
Rita Girão Guimarães
José Ricardo Costa e Silva
Gregório Alberto Saiz Lopes
Josina Maria de Oliveira
Belo Horizonte
Renato Fabiano Matheus
Curitiba
Enrikson Antonio Falabretti
Fortaleza
Francisco de Assis Tancredi Soares
Porto Alegre
Ricardo Luis Piccoli
Recife
José Milton Bezerra
Rio de Janeiro
Sergio da Luz Belsito
João Marcus Monteiro
Marcos Antonio da Silva Lopes
José Aloísio Guimarães Sanches
Salvador
Epitácio da Silva Ribeiro
São Paulo
Eduardo Stallin
Silva
Natalino Yoshimi Sakamuta
Semiramis Ensel Wizentier
DIRETORIA EXECUTIVA NACIONAL BIÊNIO 2015/2017
Presidente
Daro Marcos Piffer
Secretário
Epitácio da Silva Ribeiro
Diretor Financeiro
Ivonil Guimarães Dias de Carvalho
Diretor Jurídico
Jordan Alisson Pereira
Diretor de Comunicação
Iso Sendacz
Diretor de Assuntos Previdenciários
José Vieira Leite
Diretor de Relações Externas
Paulo Lino Gonçalves
Diretor de Estudos Técnicos
Mauro Cattabriga de Barros
Diretor de Qualidade de Vida
Márcio Silva de Araujo
Diretora de Ações Estratégicas
Rita Girão Guimarães
EXPEDIENTE ANO 14 NÚMERO 53 NOVEMBRO 2016
Por Sinal
Revista do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central do Brasil
Conselho Editorial
Aldomar Guimarães dos Santos, Clovis de Lima Barbosa Junior, Daro Marcos Piffer, Iso Sendacz, Mauro Cattabriga de Barros, Nehemias Monteiro Junior, Ricardo Luis Piccoli, Rubens Gandelman
Secretária: Sandra de Sousa Leal
SCS Quadra 01 – Bloco G sala 401 – Térreo
Ed. Baracat – Asa Sul – Cep 70.309900 – Brasília – DF
Telefone: (61) 33228208
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Contato com a Por Sinal:
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Redação
Coordenaçãogeral e edição: Flavia Cavalcanti (Letra Viva Comunicação)
Reportagem: Jefferson Guedes, Carmen Nery e Elane Maciel
Diagramação: Tabaruba Design
llustrações: Claudio Duarte
Impressão: Impressão: Ideal Gráfica e Editora Ltda
Tiragem: 8.000
Assessoria de Comunicação do Sinal Nacional: Rapport.
www.rapportcomunica.com
Permitida a reprodução das matérias, desde que citada a fonte.
O Conselho Editorial não se responsabiliza pelas opiniões expressas nos artigos assinados.
O MAPA DA CRISE FISCAL
GOVERNO E OPOSIÇÃO DIVERGEM NOS DIAGNÓSTICOS E NAS
RECEITAS. PARA O PRIMEIRO, SÓ O CONGELAMENTO DOS GASTOS TIRA O PAÍS DO
CAOS. PARA A OPOSIÇÃO, A PEC VAI APROFUNDAR A CRISE, COMPROMETENDO OS
SERVIÇOS SOCIAIS E A MÁQUINA PÚBLICA. A GUERRA FOI DEFLAGRADA.
JEFFERSON GUEDES
O discurso que prega a austeridade fiscal como o único
caminho para recuperar a economia nunca esteve tão forte. A PEC 241, já
no Senado como PEC 55, está em vias de ser aprovada no Congresso como o
exemplo mais acabado dessa narrativa. A proposta, chamada de “Novo
Regime Fiscal” (NRF), estabelece o congelamento das despesas primárias
por 20 anos baseado na correção das despesas do ano anterior por meio do
IPCA. Desta forma, o projeto de emenda constitucional ignora algumas
variáveis, como o crescimento do PIB, e desmonta dispositivos
constitucionais importantes, como aqueles que vinculam os recursos de
educação e saúde ao crescimento da receita corrente líquida.
Pelo que se viu até a votação na Câmara, a toque de
caixa, é praticamente inexistente o debate público sobre a matéria. É
verdade que, no final de outubro, os primeiros protestos contra a PEC
ganharam as ruas. Até então, a dupla Temer/Meirelles vinha sustentando
sem qualquer contestação a tese de que só a PEC 241 livraria o Brasil do
caos. A oposição, que parecia prostrada, subverteu o discurso
governista ao lançar a hashtag #PECDoFimDoMundo, sinalizando que a
proposta é o fim da educação, da saúde e da assistência social nos
moldes definidos pela “Constituição Cidadã” de 1988. A hashtag fez
muito sucesso nas redes sociais a ponto de ter ocupado o primeiro lugar
nos trending topics do Twitter.
O BRASIL ESTÁ QUEBRADO?
Com algumas variações, esse é um discurso que ganhou força na sociedade nos últimos dois anos
devido à recessão que estamos vivendo. A questão é fazer o diagnóstico
preciso, ou seja, entender se o Brasil está mesmo quebrado por conta de
uma crise conjuntural e, a partir daí, propor os remédios certos. É
justamente nesse ponto que há divergências, sobretudo porque a própria
narrativa da crise está em disputa, mesmo entre as forças políticas que
dão sustentação ao governo Temer.
O economista Luiz Carlos Bresser Pereira, ministro dos governos Sarney e
Fernando Henrique Cardoso, afirma que os economistas liberais inventaram
uma crise fiscal estrutural para dar suporte ao processo de impeachment
de Dilma e assim criar as condições políticas que permitam implantar o
Estado mínimo. O discurso apocalíptico em torno da PEC 241 seria um
exemplo de como o governo Temer surfou nas ondas da crise para
apresentar o seu projeto de Estado. Sem a PEC 241, afirma o Planalto,
teríamos novos rebaixamentos da nota do Brasil pelas agências de
classificação de risco e ainda corríamos o risco de a dívida pública
explodir. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, chegou a dizer que só a
PEC 241 salva o Brasil de ficar como o Haiti.
Mas, afinal, os números são compatíveis com tais previsões? Como pode
estar quebrado um país que, segundo dados do Banco Central divulgados em
agosto, possuía reservas internacionais de US$376,9 bilhões, que
superavam com folga toda a dívida externa, na casa de US$ 338,8 bilhões?
No frigir dos ovos, o país poderia saldar todo esse débito e ainda seria
credor externo líquido em US$ 38,1 bilhões.
Estes números passam para a comunidade internacional a imagem de fortalecimento de liquidez interna, pois a acumulação de reservas ajuda o
governo a enfrentar ataques especulativos que poderiam agravar as
crises financeiras. Aliás, é justamente a liquidez cambial a âncora do
acordo bilateral que o Brasil fechou com o FMI em outubro. Um dos termos
do acordo estabelece que o país possa emprestar até R$ 10 bilhões ao
Fundo. Ora, um país quebrado tem condições de emprestar dinheiro a uma
entidade que sempre “socorreu” o Brasil?
Por sinal, o último “socorro” do Fundo aconteceu em 2002 quando o
governo de Fernando Henrique tomou emprestados R$ 15 bilhões da
instituição. Na época, o Brasil recorria ao FMI porque a crise era
marcada também pela fragilidade cambial. Nada a ver com a situação
atual. Aliás, o mesmo FMI vaticina que o Brasil voltará a ter o oitavo
maior PIB global em 2017, superando a Itália.
A NATUREZA DA CRISE
Evidentemente, há o outro lado da moeda. O déficit público de 10,38% do
PIB em 2015 foi realmente assustador. O diagnóstico da crise mais ouvido
na mídia, feito por economistas neoliberais, defende a instalação de um
novo regime fiscal capaz de reverter os estragos causados pelos governos
petistas. Na conta dos governos Lula e Dilma, a expansão dos gastos
públicos além da capacidade fiscal do país, o déficit encoberto pela
“contabilidade criativa” e, finalmente, o mergulho na recessão quando a
bomba estourou (após as eleições de 2014) e não foi mais possível manter
represados os preços das tarifas de luz e combustíveis.
A crítica aos governos petistas oculta um fato importante: Joaquim Levy
é também um liberal. Foi nessa condição que ele assumiu a Fazenda,
apresentando uma dura proposta de austeridade fiscal. A lógica seguida
por Levy tinha um roteiro conhecido: reajustar de uma tacada só os
preços defasados, liberalizar a gestão do câmbio, retirar os incentivos
fiscais setoriais, eliminar o crédito subsidiado, reduzir salários dos
servidores e reequilibrar a política monetária.
Levy acreditava, sinceramente, que seu pacote de ajustes estabilizaria a
economia e reverteria as expectativas negativas do setor privado. A
senha para recuperar a confiança estava no discurso (e na prática) do
ministro em favor de um rígido controle do gasto público. Mas a vida é
real e de viés, e não faltaram vieses.
O tarifaço de eletricidade e combustíveis atingiu também as empresas
que, nos planos do governo, seriam o motor da recuperação econômica.
Outro fator de desequilíbrio veio da gestão do câmbio. Ao dizer que não
iria intervir de forma incisiva para segurar a desvalorização do real,
Levy ofertou sangue a esse tubarão chamado mercado. Os investidores
resolveram então topar a quedadebraço com o BC, convencidos dos ganhos
que teriam com a rápida desvalorização do real. Estavam certos, pois o
dólar saiu da casa de R$ 2,65, em 31 de dezembro de 2014, para R$ 3,97,
em 30 de setembro de 2015. A desvalorização de mais de 50% do real gerou
um prejuízo ao Banco Central da ordem de R$ 89,7 bilhões.
Neste cenário turbulento, desemprego e inflação
dispararam sem que os agentes econômicos recuperassem a confiança. E
olha que o governo fez um esforço gigantesco “dentro de casa”: afinal,
suas despesas primárias registram queda real de 2,9% no ano passado.
Ainda assim, as receitas despencaram e o déficit público cresceu.
A “GASTANÇA FEDERAL”
Diante deste fracasso retumbante, urge a pergunta: é correto atribuir a
crise fiscal à “gastança desenfreada” do governo federal? Responder a
esta pergunta é a prova dos nove para a PEC 241.
A sociedade costuma associar a “gastança” pública aos prejuízos causados
direta ou indiretamente pela corrupção. Os valores, é verdade, não são
pequenos. As estimativas projetam perdas que vão de 1,4% a 2,3% do PIB
por conta de propinas, superfaturamentos e tráfico de influência. Ainda
que o número mereça atenção, porque afinal toda a sociedade exige uma
administração ética e transparente, não podemos adicionar uma rubrica
“corrupção” quando se discute o Orçamento da União.
É preciso considerar, prioritariamente, os números
oficiais dos gastos públicos. O economista e pesquisador do Ipea Sérgio
Gobetti, que faz trabalhos sistemáticos sobre as contas públicas,
publicou em abril de 2016 um robusto estudo chamado “Uma Radiografia do
Gasto Público Federal entre 2001 e 2015” em que mostra uma realidade bem
diferente daquela imaginada pelo senso comum. A ideia de um governo
inchado, que gasta principalmente com o pagamento dos seus funcionários
e tem muita gordura para cortar, não se sustenta.
“A
maior prova de que não existe essa gordura é que em momentos de ajuste fiscal,
como o atual, o governo sempre acaba cortando os investimentos públicos e outros
gastos essenciais para a sociedade”, afirma Gobetti.
Segundo o pesquisador, as pessoas têm duas ideias equivocadas sobre o assunto. A
primeira delas é supor que a maior despesa do governo é com salário e
aposentadorias dos servidores públicos. A segunda é acreditar ser este o gasto
que mais cresce. “Nem uma coisa nem outra são verdades: o gasto com servidores
representa menos de 17% do gasto primário e cresce menos do que os demais
gastos”, explica.
A despesa de maior peso é aquela relativa aos benefícios previdenciários e
assistenciais. Nessa conta estão as aposentadorias, pensões e auxílios do INSS,
que custam R$ 440 bilhões por ano, os benefícios para idosos e deficientes de
baixa renda, que custam R$ 42 bilhões, o abono salarial e segurodesemprego, que
somam R$ 50 bilhões e, por fim, os valores despendidos com o Bolsa Família (R$
26 bilhões). No total, as despesas de seguridade superam a cifra de R$ 550
bilhões por ano. Somente a conta dos juros da dívida, que não entra no cálculo
do superávit primário, é da mesma ordem de grandeza.
Um fato, neste particular, chama atenção: desde 1999, a conta dos benefícios
sociais cresce a taxas superiores ao PIB. Ainda assim, os governos que se
sucederam conseguiram manter resultados fiscais positivos, por meio aumento da
carga tributária ou com o crescimento mais acelerado do PIB (com destaque para o
período que vai de 2006, último ano do primeiro mandato de Lula, até 2011,
início do governo Dilma).
A partir de 2012, o cenário se alterou sensivelmente. A combinação de baixas
taxas de crescimento econômico com as desonerações tributárias foi decisiva para
a queda significativa dos resultados fiscais, mesmo que a taxa de expansão das
despesas no período tenha caído. Só em 2013 a perda de arrecadação, por conta
das desonerações de tributos, foi de R$ 73,7 bilhões. O pico das renúncias
fiscais ocorreu em 2015 quando atingiu a impressionante cifra de R$ 104,7
bilhões.
Por tudo isso, Gobetti avalia que a crise fiscal por que passa o país está mais
relacionada a uma forte queda na arrecadação, fruto da desaceleração econômica,
do que à expansão dos gastos primários. Sendo assim, não é necessário ser um PhD
em Economia para supor que há algo de errado na PEC 241, já que o foco da
proposta é o congelamento das despesas primárias por 20 anos.
A
LÓGICA DO TETO GLOBAL
Os defensores da PEC 241 argumentam que as nações desenvolvidas também usam um
teto para os gastos públicos. Em debate recente promovido pela Comissão de
Assuntos Econômicos do Senado, a professora de Economia da USP Laura Carvalho
relativizou esta informação: “Nenhum país aplica uma regra assim, não por 20
anos. Alguns países têm regra para crescimento de despesas. Em geral, são
estipuladas para alguns anos e a partir do crescimento do PIB, e combinadas a
outros indicadores. Além disso, nenhum país tem uma regra para gastos em sua
Constituição.”
Sérgio Gobetti tem posição semelhante. Embora considere positiva a ideia de um
teto, o economista discorda do teor da PEC 241: “O teto proposto pretende eviTar
que o gasto cresça acima da inflação, o que é algo muito restritivo. Lembremos
que o gasto público vinha crescendo 4% ao ano acima da inflação e a proposta de
teto pretende reduzir esse ritmo para zero. É uma guinada muito radical e
temerária, porque deverá implicar o aniquilamento dos investimentos públicos e a
redução dos gastos sociais. Veja: não precisamos reduzir os gastos em proporção
do PIB, mas apenas impedir que continuem crescendo acima do PIB.”
Ele entende que seria razoável estabelecer um teto com base no crescimento médio
do próprio PIB, o que significaria estabelecer um máximo de 2% a 3% de
crescimento real ao ano e não zero como propôs o governo.
Bresser Pereira faz uma proposta semelhante. Ele defende que o parâmetro para o
teto seja a porcentagem do PIB verificada nos dois últimos anos. “Toda a despesa
pública estaria nessa porcentagem do PIB, inclusive os juros pagos”. Isso
faria uma diferença bastante significativa, pois a exclusão dos juros da dívida
do teto indica claramente que a
PEC 241 mira somente os gastos sociais. No caso da saúde, um dos grandes
problemas da PEC, segundo a deputada Jandira Feghali, é que as despesas do setor
crescem acima da inflação. Há várias explicações para isso. Déficit de leitos
hospitalares, valorização do dólar (que influencia o custo de remédios e
equipamentos), aumento do número de pessoas idosas e também a pressão dos
médicos para elevação dos seus honorários. Se o teto considerasse o crescimento
médio do PIB, haveria uma margem de segurança capaz de fazer frente à chamada
“inflação médica”.
Na lógica do teto global desconectado do crescimento do PIB, como está previsto
na PEC 241, haverá forçosamente uma realocação de gastos que irá comprometer
tanto os serviços sociais quanto a máquina pública. Levando em conta que algumas
despesas (como os benefícios previdenciários) tendem a crescer acima da
inflação, os demais gastos (como Bolsa Família e investimentos em infraestrutura) precisarão encolher de 8% para 4% do PIB em 10 anos e para 3% em
20 anos.
A contrapartida dessa tragédia? Mais uma reforma da Previdência, consolidando de
vez a retirada de direitos e o aperto nas contas públicas. Só assim virá a
esperada queda dos juros, que segundo os líderes do governo cairão “naturalmente” com os projetos apresentados pelo governo.
O IMPACTO DOS JUROS
Este discurso messiânico, aliás, serve de pretexto para os defensores da PEC 241
ignorarem aqueles que tentam trazer a questão dos juros para o centro do debate. Para Ricardo Piccoli, membro do Conselho Nacional do Sinal, é importante
discutir a relação entre a arrecadação tributária e os juros da dívida. Ao se
debruçar sobre o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2016, Piccoli
verificou que, no conjunto das receitas correntes da União (R$ 1,415 trilhão),
há duas grandes rubricas:
-
A receita da Seguridade(R$ 621,313 bilhões) que tem destino
específico;
-
A receita fiscal (R$ 794,217bilhões) oriunda de impostos,
taxas e contribuições diversas.
Ora, a mesma lei orçamentária prevê um gasto de R$ 304,099 bilhões para juros e
encargos da dívida, que será bancado pela receita fiscal. Ou seja, boa parte dos
impostos recolhidos de toda a Nação está servindo apenas para bancar os juros.
A questão é que a conta juros não para por aí. As perdas que o Banco Central tem
com os contratos de swap cambial (aquela quedadebraço que a instituição faz
com o mercado em torno do preço futuro do dólar) são zeradas com operações
compromissadas de títulos da dívida pública, que pagam juros Selic. No ano
passado, as operações de swap deram um prejuízo de R$ 90 bilhões, incorporado
integralmente ao custo de rolagem da dívida. O quadro na página 9 dá uma ideia
de como esse prejuízo vem crescendo.
Se os swaps cambiais fossem desconsiderados, a despesa com juros teria passado
de 5,3% do PIB em 2014 para 6,8% em 2015. Com os swaps, a conta de juros atingiu
a impressionante marca de 8,5% do PIB. E se observarmos os resultados de
janeiro de 2016, a porcentagem se eleva para 9,1% do PIB. Em pleno período
recessivo!
Piccoli apresenta outros números impactantes quando se compara o custo de
rolagem da dívida brasileira com a dívida americana. Em 2015, os EUA gastaram
cerca de US$ 150 bilhões com o pagamento de juros. O Brasil também. “A diferença
é que eles têm um PIB de US$ 18 trilhões (12 vezes maior que o nosso) e uma
consequente arrecadação de 12 a 15 vezes superior”, avalia.
Outro dado interessante: a parcela destinada ao serviço da dívida americana caiu
para 1,4% do PIB. Entre nós, seria um sonho se regredíssemos para algo em torno
de 5% (índice já registrado no governo Lula e no primeiro governo Dilma).
Nas discussões em torno da PEC 241, a deputada Erika Kokay (PTDF) apresentou
uma emenda para impor um teto de 5% do PIB à rolagem da dívida. A proposta foi
solenemente ignorada. Nem houve discussão sobre o tema.
Para a professora Laura Carvalho, a PEC não só não é a panaceia para estabilizar a dívida pública como pode até mesmo prejudicar sua dinâmica. Isso
porque a proposta ignora os três itens que mais explicam a crise atual: a falta
de crescimento econômico, a queda de arrecadação tributária e o pagamento de
juros.
O próprio crescimento da dívida pública no ano passado se deve às despesas com
juros. O quadro abaixo, elaborado por João Sicsú, professor do Instituto de
Economia da UFRJ, mostra que o governo registrou superávit primário no período
20032013 e que só houve déficit orçamentário ou nominal devido aos juros da dívida. Já em 2014 e 2015 o setor público não teve superávit primário por conta da
recessão. O estrago ganhou proporções assustadoras, sobretudo em 2015, por conta
da elevação dos juros.
O que é há de estrutural aqui, na visão do economista, é que não existe
déficit orçamentário quando o país registra crescimento econômico. Sicsú
argumenta
que as despesas com juros são altas não porque o montante da dívida seja exorbitante, mas porque a taxa Selic é alta demais. Uma redução de apenas 3 pontos
percentuais na taxa Selic geraria uma economia de 1,9% do PIB na conta de juros.
OUTROS AJUSTES SÃO POSSÍVEIS?
Existe um consenso de que é preciso um ajuste fiscal. Mas de que tipo? Para
Sérgio Gobetti, não adianta cortar investimentos públicos ou comprimir gastos de
manutenção das universidades, por exemplo, fato que já está acontecendo e que
vai piorar com a PEC 241.
“Isso não ajudará em nada a equilibrar as contas e, ao contrário, pode até
piorar, como parece ter sido o caso de 2015 e 2016”, avalia o pesquisador. “O
ajuste que precisamos”, a seu ver, “não se faz do dia para a noite, depende de
reformas e de uma espécie de pacto social que torne equilibrada a distribuição
de sacrifícios na sociedade.” Para Gobetti, não é aceitável que se faça um
ajuste fiscal “sem tomar qualquer medida que atinja o pessoal do andar de cima”.
É nesse sentido que a oposição defende uma reforma tributária progressiva que
inclua, por exemplo, a tributação sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos.
Nos últimos governos, nenhum presidente teve coragem de apresentar uma proposta
capaz de ampliar a progressividade dos tributos ou mesmo corrigir as distorções
existentes no sistema atual. Fica evidente a falta de alternativas fiscais
sintonizadas com um projeto de país que valorize a democracia, a distribuição de
renda e a preservação dos direitos sociais. Aliás, a democracia é uma
das grandes atingidas pela PEC 241.
Quem diz isso é o cientista político Jessé Souza, presidente do Ipea até o
afastamento de Dilma. No seu entender, a aprovação da proposta fará com que o
sistema representativo, fruto do processo eleitoral, seja forçado a abrir mão
durante 20 anos de uma de suas prerrogativas, que é justamente a discussão mais
aprofundada sobre os rumos do Orçamento da União. Nesse sentido, a própria
eleição presidencial em 2018 ficará prejudicada, pois o eleito sabe que vai
pisar no Planalto de mãos atadas em função da PEC 241.
“A ausência de pluralidade de interpretações e análises na esfera pública é
característica típica de regimes autoritários. Acredito que vivemos isso hoje”,
conclui Jessé Souza.
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OS REAIS EFEITOS DA PEC
RICARDO LUIS PICCOLI
PEC 241 não vai trazer equilíbrios às contas públicas.
Porque, diferentemente doque sustenta o governo, o desequilíbrio nas contas
públicas não é causado pelo funcionalismo público, nem pelos gastos com
saúde e educação. O desequilíbrio nas contas públicas é causado pela alta
carga de juros pagos sobre a dívida pública interna. Dívida que, em outubro
de 2016, chega à marca bruta de R$ 3 trilhões.
Em 2015, entre juros da dívida, operações compromissadas (juros pagos pelo
BC para enxugar a “liquidez” do mercado – na verdade, um enorme sistema de
remuneração overnight) e swaps cambiais, gastamos quase R$ 600 bilhões (de
acordo com dados do BC e do Tesouro).
Nesse compasso, em 2016, somando as três rubricas anteriores, pagaremos mais
de R$ 700 bilhões em juros (projeção feita a partir da dívida bruta e dos
juros oficiais). Muito mais que o Bolsa Família (R$ 27 bilhões anuais).
Muito mais que o orçamento total para a educação e saúde (R$100 bilhões,
cada). Muito mais que o gasto com servidores.
A Previdência (e Assistência, não esqueçamos), rubrica boa para se manipular
na justificativa de cortes, devido ao seu tamanho, tampouco é problema. Seu
orçamento, na faixa de R$ 500 bilhões, de acordo com os dados do Orçamento
da União, é amplamente coberto pelas contribuições (ver estudo de Denise
Gentil, do IE da UFRJ). Um déficit de R$ 80 bilhões, ao ano, devido à
Assistência, não poderia ser imputado a aposentados. Porém, é utilizado,
sistematicamente, para mascarar os interesses em cortar conquistas sociais
do trabalho, enquanto beneficia livremente as finanças.
Em 2015, as receitas correntes da União – aquelas que são receitas reais,
não incluindo as receitas financeiras – chegaram a R$ 1,4 trilhão (ver
Orçamento da União, site do Ministério da Fazenda). Com os quase R$ 600
bilhões
desviados ao setor rentista, perdemos de saída mais de 43% do orçamento real
para os bancos e investidores estrangeiros. Dinheiro esse que não retorna à
economia. É usado para concentrar capital em setores não produtivos ou
enviado ao exterior. Em 2016, esse percentual chegará próximo a 50%. A PEC
241 não vai melhorar a confiança do investidor estrangeiro, como propaga
nosso expresidente do BC, agora ministro da Fazenda. Não vai trazer
investimento em bens de capital ou investimento produtivo em bolsa, como
afirma Lia Valls, do Ibre/FGV. Essa PEC só vai atrair capital especulativo
para os bancos comprarem mais e mais títulos, a taxas abusivas. Ela vai
trazer de volta, apenas, a confiança do rentista e especulador financeiro
interno, que paga centenas de milhões à mídia, no horário nobre da TV. Se é
preciso restringir os gastos governamentais, cortando nas áreas de saúde e
educação, por que então liberar os gastos com rentistas? Como os juros
oficiais e os juros ao capital são estratosféricos, no Brasil, não há
expectativa positiva na produção doméstica. O investidor externo já não
acredita em produzir no Brasil. Se vier para essas bandas, virá para
especular. Não vai investir produtivamente no Brasil, um país que dá sinais
claros de que não tem política industrial e prioriza a ciranda financeira.
O capitalista industrial interno, por sua vez, já se negou a acreditar no
Brasil. Prefere importar da China, país que recebe investimento produtivo
externo, pois tem política industrial consolidada. Ou mandar produzir fora,
aplicando suas economias em títulos do governo, ao invés de investir na
atividade produtiva. O índice da Bovespa prova isso, há algum tempo. Lucros
no Brasil, somente no sistema financeiro, vide lucros bilionários do Itaú e
do Bradesco.
Diferentemente do que se poderia imaginar, a considerar a campanha do
“pato”, o industrial brasileiro não foi agraciado com as benesses dessas
medidas catatônicas da economia. Há tempo, ele deixou de investir. A Fiesp,
nosso representante mor paulista do setor produtivo brasileiro, combateu
ferozmente com seu “pato” quem tentou criar uma política para o setor –
mesmo com as devidas e justas críticas, somadas a diversos erros. O mesmo
“pato” que, hoje, desapareceu das ruas e da mídia.
O alto custo do capital no Brasil, considerando a oportunidade de
investimento em títulos a 14%, assim como as altas taxas de juros ao setor
produtivo, transformou nosso industrial em rentista. Basta ver as altas
taxas de liquidez (títulos) que as grandes empresas mantêm no Brasil. É mais
fácil explorar a Selic a 14%, sem risco, do que investir, com risco.
Mas o industrial local, ironicamente, tem uma enorme parcela de culpa nessa
jogatina financeira, pois jamais se engajou em uma política progressista e
vanguardista de incentivo à produção. Preferiu desistir de baixar custo do
capital e se unir ao setor financeiro. Assumiu, assim, uma posição mais
confortável, considerando que as finanças garantem bons rendimentos à sua
liquidez, que não é investida, residindo aí o nosso grande problema de
investimento.
A PEC 241 não vai melhorar nossa empregabilidade. Com juros nesse nível, que
promovem a recessão, não vai favorecer o aumento da demanda agregada e, com
isso, estimular o crescimento da oferta. Terá, apenas, um efeito de
“expectativas negativas”, para usarmos uma expressão dos liberais
neoclássicos. Aumentará o déficit de oferta, que impulsionará a inflação,
que, por sua vez, impulsionará os juros, que diminuirá a oferta, que
alimentará o ciclo vicioso. E esse ciclo alimentará tãosomente o rentista e
financista, nas costas da força de trabalho. E buscará compensação nos
direitos do trabalhador brasileiro. Aquele que não merece ter um sistema de
saúde adequado, muito menos uma educação para seu filho, como aprovaria
nosso deputado paulista, Nelson Marquezelli, ao afirmar que “quem não em
dinheiro não deve fazer faculdade”.
Ao final, concluise que a PEC 241 é, simplesmente, uma
maneira de apaziguar o explorador financeiro interno. Aquele que patrocinou
a turma que hoje dita as regras na política. A PEC 241 não vai trazer
confiança ao investidor externo, pelo contrário, suas expectativas quanto a
produzir no Brasil vão piorar. Só vai trazer desconfiança e nenhuma
expectativa ao trabalhador.
O Brasil não precisa da PEC 241 para ajeitar suas finanças públicas. O país
precisa baixar os juros e, com isso, diminuir a dívida interna. Precisa
educar e cuidar da saúde de sua população, que trabalha e gera toda a
riqueza neste país. Precisa de políticas públicas industriais, de câmbio e
de consumo.
E não vemos nada nesse sentido. Apenas articulações de um
Congresso desnorteado, religioso, bovino e conservador, capturado pelo poder
midiático moderno. Ou por um grupo que se refestela com a retirada de
direitos do trabalho, ávido em transferir a riqueza do trabalho ao rentista,
via taxas de juros oficiais.
Ignacio Rangel, há alguns anos, alertava sobre os oligopólios brasileiros.
Segundo ele, a elevação autônoma dos preços decorre, historicamente, da
atuação de empresas com elevado poder de concentração e que dominam a
estrutura de comercialização de produtos agrícolas. O que ele falaria,
hoje, nesse quadro políticosocialeconômico brasileiro no qual, além da
dominância oligopolista na comercialização, temse um ambiente de poderosa
dominância financeira na produção real, de dominância da racionalidade
neoclássica na economia, somado ao “voracityeffect” (The VoracityEffect;
Aaron Tornell e Philip Lane; 1989) na política?
(*) RICARDO LUIS PICCOLI é Especialista do Banco Central e conselheiro
nacional do Sinal.
REFORMA AMEAÇA MODELO DE CIDADANIA SOCIAL
PROPOSTA DO GOVERNO VAI DESMONTAR O SISTEMA SOLIDÁRIO DE
SEGURIDADE SOCIAL, SUSTENTADO EM CONTRIBUIÇÕES DAS EMPRESAS, DOS
TRABALHADORES E DO ESTADO.
VERÔNICA COUTO
A
reforma da Previdência Social pretendida pelo governo representa uma ruptura
radical com o modelo de cidadania pactuado na Constituição de 1988. Uma mudança que, segundo especialistas, vai desmontar o sistema solidário de
Seguridade Social, sustentado numa estrutura tripartite, que prevê
contribuições das empresas, dos trabalhadores e do Estado. E, no futuro,
tornar a aposentadoria inatingível para a maior parte dos brasileiros.
Ao contrário dos argumentos oficiais, estudos apontam que o sistema atual é
superavitário. Mas seus recursos têm sido drenados em isenções concedidas a
microempresas e exportadores do agronegócio, entre outros setores, e
utilizados para pagamento de juros da dívida pública.
A renúncia previdenciária estimada para 2016, da ordem de R$ 69 bilhões,
equivale a cerca da metade do suposto déficit da Previdência que o governo
anunciou para este ano – de R$ 150 bilhões. Em 2015, só a CSLL e a Cofins,
que deveriam estar financiando o sistema, somaram R$ 263 bilhões, superando
em 57% esse valor. Os dados foram extraídos da publicação “Entender e
defender a Previdência Social”, produzida pelo Sindicato dos Bancários e
Financiários de São Paulo, Osasco e Região, cujos textos estão assinados
pelos professores João Sicsú, da UFRJ, e Eduardo Fagnani, da Unicamp.
A sustentabilidade do modelo de seguridade brasileiro também foi demonstrada
pela professora Denise Gentil, autora da tese de doutorado “A falsa crise
da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período
19902005”, defendida na UFRJ em 2006. Para a pesquisadora, o modelo não
precisa de reforma. Sua capacidade de sustentação futura
dependerá, contudo, de mudanças na política econômica que impliquem a
promoção do crescimento associado à distribuição de renda (ver entrevista na
página 21). “Os resultados dessa investigação levaram à conclusão de que o
sistema de seguridade social é financeiramente autossustentável, sendo capaz
de gerar um volumoso excedente de recursos”, escreve. “Entretanto, parcela
significativa de suas receitas é desviada para aplicações em outras áreas
pertencentes ao orçamento fiscal, permitindo que as metas de superávit
primário sejam cumpridas e até ultrapassadas.”
A subtração das receitas previdenciárias para outros fins foi agravada com a
ampliação – de 20% para 30% – da Desvinculação de Receitas da União (DRU),
mecanismo que permite ao governo federal usar parte da arrecadação em
qualquer gasto considerado prioritário para obtenção de superávit primário.
Um dos efeitos perversos desse desvio é a retirada do dinheiro da
aposentadoria do mercado, como destaca o professor Sicsú. A maior parte dos
aposentados gasta tudo o que recebe, com remédios, aluguel, comida,
transporte, etc., injetando 100% dos benefícios na economia. Já os gastos
com o serviço da dívida ficam entesourados no setor financeiro, girando na
compra de mais títulos.
A redução da contribuição do Estado e o aumento da participação do
trabalhador no financiamento do sistema são aspectoschave da reforma que o
governo está preparando. Para isso, entre outras medidas, o governo quer
aumentar as exigências para a concessão de aposentadorias aos empregados
urbanos – alongando o tempo de trabalho e de contribuição – e reduzir o
valor dos benefícios (desvinculandoos do salário mínimo). A previsão era de
que a proposta fosse apresentada à Câmara dos Deputados até dezembro,
devendo ser efetivamente discutida em plenário no primeiro semestre de 2017.
A DISPUTA NO CONGRESSO
No Congresso, o debate promete ser acirrado, colocando em lados opostos
concepções distintas de Seguridade Social e de projeto nacional. De um lado,
a favor da reforma, a base do governo e representantes de empresas privadas,
como a Fecomércio SP, que enviou em setembro sua própria proposta ao
Ministério da Fazenda. De outro, a Frente Parlamentar Mista em Defesa da
Previdência Social, integrada por entidades sindicais e outros órgãos de
defesa de trabalhadores e aposentados, movimentos sociais e parlamentares.
Segundo o senador Paulo Paim (PTRS), o objetivo da Frente é percorrer todos
os estados brasileiros para organizar a resistência contra a redução de
direitos. Durante o lançamento da Frente, em junho, o presidente do
Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal), Daro Piffer,
ressaltou a importância de difundir o debate sobre a reforma junto à
população. “Aqueles que querem fazer a reforma da Previdência mentem”,
afirmou. “Temos argumentos mais do que sólidos para sobrepôlos, e nosso
desafio é leválos a toda a sociedade brasileira.”
Nessa direção, a Associação Nacional dos Fiscais da Receita Federal do
Brasil (Anfip) reuniu especialistas de várias áreas para propor um projeto
de inclusão social a partir do atual regime de previdência brasileiro.
“Teremos um projeto para ser debatido e legitimado pelos segmentos sociais”,
explica Vilson Romero, presidente da entidade. “O foco é fugir da ditadura
demográfica que quer impingir uma idade mínima aos brasileiros, a partir de
paradigmas desfocados, como os de países da Comunidade Europeia, que têm
altos índices de desenvolvimento humano.”
De fato, mesmo em economias mais desenvolvidas, a menor contribuição do
Estado para a Previdência tem aumentado os níveis de pobreza na maioria
dos países que reformaram seus modelos de seguridade. E já se observa, em
vários países, como o Chile, um movimento de reestatização dos sistemas para
socorrer trabalhadores que não conseguiram se aposentar em condições mínimas
pelos novos modelos, como aponta o relatório WorldSocial Protection Report
2014/2015, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Sob o pretexto de assegurar a sustentabilidade das pensões e aposentadorias
e a consolidação das finanças públicas, há uma pressão global contínua que
visa reduzir a responsabilidade do Estado”, afirma o documento. O que
significa, na análise da OIT, um “deslocamento para os indivíduos dos riscos
econômicos associados à oferta de aposentadorias, minando os sistemas e
reduzindo sua capacidade de prevenir a pobreza na velhice”. Como resultado
das muitas reformas implantadas após a crise de 2008, o levantamento
constata que os futuros pensionistas receberão pensões mais baixas em, pelo
menos, 14 países da Europa (ver matéria na página 23).
FONTES DE FINANCIAMENTO
Os defensores da reforma brasileira afirmam existir déficit previdenciário
na tentativa de demonstrar a falta de sustentabilidade do modelo tripartite
ante o aumento da longevidade populacional. Nessa conta, somam todas as
receitas das contribuições feitas sobre folha de pagamento e subtraem os
benefícios pagos. Em 2015, contribuições totais previdenciárias de R$ 350,2
bilhões e pagamentos de R$ 436 bilhões resultariam em um déficit de R$ 85,8
bilhões. Ou de R$ 150 bilhões, em 2016, conforme estimativa do governo feita
com a mesma metodologia, citada no documento do Sindicato dos Bancários de
São Paulo.
O déficit, contudo, é contestado por especialistas, porque despreza, no seu
cálculo, as demais receitas previstas na Constituição para a Seguridade
Social. “O sistema é superavitário. Não há necessidade de reforma da
Previdência porque a Constituição de 1988 indicou a forma de financiamento
do modelo. Basta cumprila”, avalia Sicsú.
O texto constitucional, no artigo 194, incluiu a Previdência como parte da
Seguridade Social, que engloba ainda saúde, assistência social e
segurodesemprego, idealizada para garantir acesso da população a serviços
públicos essenciais ao exercício da cidadania. Para financiar esse sistema
(e a Previdência dentro dele), a Constituição estabeleceu o Orçamento da
Seguridade Social (artigo 195), cujas fontes de receita abrangem, além das
contribuições dos trabalhadores e das empresas, a Contribuição para o
Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido (CSLL) e a receita de concursos de prognósticos (as loterias).
Um total, em 2015, de R$ 675 bilhões.
Em vez de déficit, o Orçamento da Seguridade Social registraria um superávit
de R$ 16,1 bilhões, descontados os R$ 658,9 bilhões dos gastos com
benefícios previdenciários, assistência social, BolsaFamília,
segurodesemprego, entre outras despesas, segundo levantamento feito pela
professora Denise Gentil (ver tabela na página 19).
O número não leva em conta as isenções de R$ 62,2 bilhões, sem as quais o
saldo positivo chegaria a R$ 78,3 bilhões no ano passado. Do total que não
foi arrecadado, segundo informações do Ministério do Planejamento citadas
pelo jornal ValorEconômico, a desoneração da folha de pagamentos representou
R$ 22,4 bilhões; as empresas do Simples Nacional responderam por outros R$
22,4 bilhões; não recolhidos. Por exemplo, por meio de rubrica orçamentária
nos ministérios responsáveis pelas políticas atendidas pelas isenções, como
indústria e comércio, desenvolvimento agrário, educação, saúde, para repor
os recursos. “Entendemos que deve haver incentivo a setores da economia, com
formas diferenciadas de pagamento à Previdência ou isenções, em nome da
melhor condição negocial. O que não pode é serem suprimidos recursos
destinados à aposentadoria dos brasileiros e estes recursos não retornarem
imediatamente aos cofres do INSS.” Outro engano recorrente para os
especialistas é querer isolar as aposentadorias rurais, que têm baixa
contribuição devido às condições especiais do trabalho no campo. Ou somar no
total de benefícios pagos os desembolsos com o funcionalismo público,
categoria que, pela lei, tem regramentos distintos. De acordo com a
Constituição, a previdência do servidor federal não está prevista na
Seguridade Social. “Nesse segmento, as reformas já foram realizadas – em
1998 e em 2012”, lembra o professor Fagnani,
da Unicamp.
No último ajuste, as aposentadorias do Regime Próprio dos servidores
federais passaram a ter os mesmos limites das do Regime Geral e foi
autorizada a criação de três entidades fechadas de previdência complementar,
vinculadas à Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público
Federal do Poder Executivo (Funpresp), cujos planos têm adesão opcional. O
presidente Michel Temer, contudo, declarou em entrevista à Rádio CBN, em 11
de outubro, que a proposta de reforma vai igualar as regras nos dois
regimes, podendo dar condições especiais apenas aos militares.
PROPOSTA DA FECOMÉRCIO SP
Mesmo entre os defensores da reforma previdenciária, reconhecese a captura
de recursos que deviam servir para o pagamento de benefícios. A extinção da
DRU, para que as receitas do sistema voltem à Seguridade, é uma das medidas
propostas pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado
de São Paulo. Uma das maiores federações setoriais do país, com 57
associações empresariais, a Fecomércio SP enviou ao Ministério da Fazenda
seu próprio desenho de reforma da Previdência. Também prevê alongamento da
idade e mais tempo de contribuição para a aposentadoria e alteração na regra
de cálculo do salário mínimo, para reduzir o índice de correção dos
benefícios.
De
acordo com a legislação atual, o salário mínimo é reajustado com base na
variação do PIB real de dois anos antes mais a inflação do ano anterior
medida pelo INPC, do IBGE. Em vez de considerar o PIB real, a entidade quer
a correção pelo PIB per capita, atrelando as aposentadorias à produtividade
dos economicamente ativos. “Se o PIB real cresce menos e a população
cresce mais, evidentemente que a produtividade média será menor”, justifica,
em documento disponível em seu site. A mudança provocaria, por exemplo, uma
redução de 1% no valor do salário mínimo de 2014. Ou menos R$ 4,5 bilhões
para os gastos da Previdência, segundo a proposta.
Já
o governo estuda desvincular do salário mínimo a correção dos benefícios.
Uma mudança de impacto amplo: dos cerca de 33 milhões de beneficiários da
Previdência Social no Brasil, aproximadamente 70% recebem um salário mínimo. Ou seja, sem a Previdência, estimase que mais de 23 milhões de pessoas
estariam na pobreza extrema. Dados do IBGE mostram, ainda, que o percentual
de pobres era de 24,2% da população em 2014, índice que, sem o pagamento dos
benefícios, subiria a 37,6%, ou 77,5 milhões de pessoas.
O professor Fagnani considera um erro conceitual grave ancorar a
sustentabilidade do sistema na produtividade do trabalho, em um momento em
que as tecnologias da informação e comunicação estão mudando os paradigmas
tradicionais da economia. Na sua opinião, um novo padrão de financiamento,
com uma reforma tributária progressiva sobre patrimônio, heranças, lucros e
dividendos, deveria aproveitar o aumento da lucratividade em setores que
têm cada vez menos custos com pessoal. “Não se pode financiar a Seguridade
Social com a base salarial fordista das décadas de 1960 e 1970. Com a quarta
revolução industrial, a tecnologia de impressão 3D, os custos caíram, o
lucro aumentou. E as receitas devem vir dessa produtividade, e não da
contribuição empresarial sobre a base salarial.”
A Seguridade Social é o maior programa de redistribuição de renda do mundo
ocidental, mantendo as economias de mais de 80% dos municípios brasileiros,
sustentando cerca de 90 milhões de brasileiros que vivem do INSS, ou são
dependentes de beneficiários. “Devese ter muita cautela e muito juízo ao
pretender fazer alterações paramétricas tendo somente como foco as questões
matemática, atuarial e orçamentária”, adverte Vilson Romero, da Anfip.
IDADE MÍNIMA E PRIVATIZAÇÃO
Atualmente, é praticamente impossível conseguir aposentadoria pelo teto do
benefício, destaca o economista João Sicsú. A maioria, ou 53% do total, se
aposenta por idade (60 para mulheres, 65 para homens). Apenas 29% por tempo
de contribuição, e 18% por invalidez. Em média, o trabalhador urbano se
aposenta com 63,1 anos, idade muito próxima à exigida nos países
desenvolvidos. A média geral cai para 57,5 anos, ao incluir as aposentadorias rurais (média de 56,7), e os casos de invalidez (52,7) e invalidez por
acidente de trabalho (50).
Idades mínimas de 65 anos para todos os tipos de aposentadoria foram
adotadas em países como Japão, Espanha e Alemanha, onde, contudo, a
expectativa de vida ao nascer respectivamente de 85,9, 82,5 e 81 anos,
segundo a Organização Mundial da Saúde – já era, em 2012, bastante superior
à brasileira, em 2014 (de 75,2, segundo o IBGE). Em Alagoas, os homens têm a
menor expectativa de vida do país, de 66,2 anos.
As dificuldades para cumprir as exigências para a aposentadoria e a menor
participação do Estado no financiamento da Seguridade, com consequente
redução dos valores dos benefícios pagos pelo sistema público, devem induzir
as pessoas a buscar a previdência privada, tal como ocorre com os planos de
saúde. Uma alternativa que, na avaliação de Sicsú, transfere recursos ao
capital financeiro e apresenta maior risco para o segurado. “Ao contrário
dos bancos, o governo não quebra.”
O avanço da privatização da Previdência também está na proposta que a
Fecomércio SP enviou ao Ministério da Fazenda. A entidade quer o estímulo às
contratações de planos complementares, por meio de campanhas publicitárias,
e da inclusão de cursos de “educação financeira” nos currículos do ensino
fundamental e médio, como disciplina obrigatória. Na prática, se aprovada a
reforma nos
termos que estão sendo divulgados pelo governo, o Brasil será o país com
mais exigências para concessão de benefícios previdenciários públicos. “Não
se pode aceitar o fatalismo demográfico”, alerta Fagnani. “A população vai
envelhecer,vão aumentar os gastos. Mas a alternativa não podem ser regras
tão restritivas que a pessoa só consiga se aposentar na próxima encarnação.
Mesmo em países onde a transição demográfica já se concluiu, com mais
aposentados do que trabalhadores economicamente ativos, o que só deve
acontecer no Brasil entre 2040 e 2050, não há condicionantes tão severos
quanto os que estão sendo propostos.”
AMEAÇA AOS TRABALHADORES RURAIS
A reestruturação ministerial realizada pelo governo Temer acabou
com o Ministério da Previdência Social, transformandoo na
Secretaria da Previdência já sem a qualificação de social,
dentro do Ministério da Fazenda. Com a pasta, seguiram para a
Fazenda todos os órgãos a ela vinculados: Previc, Dataprev, e o
Conselho de Recursos, tribunal administrativo que faz a mediação
dos litígios entre o governo e segurados, inclusive os seus
grandes devedores.
Todos, menos um. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS),
responsável pelo pagamento dos benefícios previdenciários, foi
integrado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário.
A medida refletiria, segundo analistas, a
intenção de transformar os benefícios pagos aos trabalhadores
rurais em uma assistência social. Status, por exemplo, dos
diferentes programas de bolsaauxílio, como o BolsaFamília. Se
confirmada essa diretriz, será o desmembramento efetivo do
sistema de Seguridade Social previsto na Constituição.
Dados do IBGE indicam que 36% da população brasileira é rural.
Os agricultores têm um modelo contributivo diferente, com
alíquotas entre 0,1% e 2% sobre o que produzem, recolhidas pela
empresa compradora. O Valor Bruto da Produção Agropecuária de
2015 somou R$ 516 bilhões, segundo dados da Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), citados no documento
“Previdência Social – contribuição ao debate”, publicado pela
Frente Parlamentar Mista em Defesa da Previdência Social, em
parceria com a Anfip. Em contrapartida, diante das renúncias,
imunidades, desonerações e baixa fiscalização, a arrecadação é
muito inferior – da ordem de R$ 7 bilhões no mesmo período,
obviamente insuficientes para cobrir os R$ 98 bilhões de
aposentadorias rurais. Razão pela qual o Orçamento da Seguridade
Social previu outras fontes solidárias para seu financiamento,
como a CSLL e a Cofins.
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ENTREVISTA
/ DENISE GENTIL
"Seguridade Social financia juros da dívida"
Para
a professora Denise Gentil, o Novo Regime Fiscal da PEC 241, que prevê 20
anos de restrições aos gastos públicos, ao lado da Reforma da Previdência,
“é um projeto de aniquilamento social que vai trazer o aprofundamento da
recessão no país e, com ela, a deterioração das condições de vida dos idosos
do amanhã, que são os jovens de hoje”. Se desfizer o modelo tripartite de
cidadania social, Michel Temer será, segundo a economista, “o coveiro da
Constituição de 1988”.
Do que o Brasil precisa, na opinião de Denise, é de uma política
macroeconômica voltada para o crescimento, um projeto de país com programas de incentivo à industrialização, à inovação e à qualificação dos
trabalhadores para aumentar o valor e a produtividade do trabalho. “Se não
fizermos nada agora”, diz, “o problema não é que teremos muitos aposentados
e idosos no futuro, mas empregados com baixa renda salarial e grande
dificuldade de contribuir.”
Defensores de uma reforma na Previdência com alongamento da idade e do tempo
de contribuição alegam que o envelhecimento demográfico, com mais inativos
recebendo benefícios do que ativos contribuindo para o sistema, tornará o
modelo atual insustentável em alguns anos. É preciso fazer alguma coisa para
garantir as pensões e aposentadorias no futuro?
É preciso tomar medidas imediatas hoje para não termos resultados
dramáticos no futuro. O determinismo demográfico não é uma tese pacificada,
mas uma questão socioeconômica, com projeções que podem se revelar muito
diferentes da realidade. O governo deve fazer uma política econômica que
aumente a produtividade do trabalho, investindo em inovações, ciência e
tecnologia, educação. Porque o importante, no futuro, não é quanto será o
gasto com os inativos, mas a capacidade de produzir dos trabalhadores
ativos. E que agora se encontra estagnada. Há um exemplo clássico nesse
sentido. Um trabalhador francês do campo, no século 19, produzia o
suficiente para alimentar apenas 13 pessoas. O mesmo trabalhador, em um
hectare no Sul da França, no final do século 20, produzia
bastante para alimentar 300 pessoas. O importante não é o número de idosos,
mas a capacidade produtiva dos trabalhadores ativos. Se ela for crescente,
não teremos problema. Para isso, temos de promover a educação para jovens,
estimular a industrialização. A solução deve ser encontrada na receita, na
capacidade de pagar impostos. Um trabalhador mais produtivo, com mais
renda, terá mais condições de recolher para a Seguridade Social.
Nesse contexto, quais serão as principais consequências das reformas
pretendidas pelo governo no Novo Regime Fiscal da PEC 241 e na reforma da
Previdência Social?
Fomos um dos países que mais se desindustrializaram nos últimos cinco anos.
E esse movimento trouxe um prejuízo enorme à produtividade do trabalho no
país. Em um cenário de recessão, com trabalhadores de baixa remuneração e
capacidade de produção, com muita informalidade, o sistema vai perdendo
força. A saída é uma política macroeconômica para o crescimento, o que
implica escolher um projeto de nação. E que não é este que está para ser
votado. A PEC 241, a Reforma da Previdência, tudo isso é um projeto de
aniquilamento social. O Ulysses Guimarães do PMDB a construiu; o Temer, do
mesmo PMDB, será o coveiro da Constituição de 1988.
A principal consequência para o país é o aprofundamento da recessão. E,
junto com ela, a deterioração das condições de vida dos idosos de amanhã,
que são os jovens de hoje. Ou seja, a incapacidade de a maioria dos
brasileiros ter acesso aos benefícios das aposentadorias e das pensões; a
falta de amparo no momento do desemprego, da velhice, da doença. Vamos
perder esse amparo, porque o governo vai cortar os benefícios. É a
precarização social, o retrocesso, o genocídio.
Quanto dos recursos da Seguridade Social que estão previstos na Constituição
é destinado a pagamento de juros da dívida pública?
Em 2015, foram R$ 501 bilhões para pagamento de juros, ou 8,5% do PIB. A
maior parte, da Seguridade Social, porque foi o único orçamento que deu
superávit. O déficit da União foi de 2% do PIB, mais de R$ 100 bilhões – uma
parte financiada com rolagem da dívida, outra com a Seguridade Social.
Por que é tão difícil debater a reforma da Previdência levando em conta suas
fontes de receita constitucionais? Por que o discurso de governo,
empresários e mídia ignora essas fontes? Porque o governo não divulga a outra possibilidade de entendimento. E isso acontece porque quer favorecer a
privatização da Previdência, passar a ideia de que o modelo vai quebrar no
futuro, e favorecer os bancos, que serão os grandes beneficiários da
desistência do brasileiro de ter uma previdência pública.
A extinção da Desvinculação das Receitas da União (DRU) seria suficiente
para recuperar os recursos desviados da Seguridade para outros fins? Ou a
parcela transferida para fora do sistema já é maior do que os 30%
autorizados pela DRU?
Não há como sabermos, porque o governo não faz o Orçamento da Seguridade
Social e não discrimina essas transferências. Não há o menor controle sobre
isso. Nem me lembro de ter visto alguma vez relatório do TCU sobre esses
dados.
NO MUNDO, OS EFEITOS DA ONDA PRIVATISTA
Várias experiências internacionais de reformas privatizantes da
Previdência Social estão sendo revistas. A retomada da
participação do Estado no modelo de financiamento foi a saída
encontrada para evitar o empobrecimento crescente da população
idosa, de acordo com o relatório WorldSocial Protection Report
20142015, da Organização Internacional do Trabalho. O Chile foi
o primeiro país a dar um passo atrás na privatização da
seguridade. Mas Argentina, Uruguai, Polônia, Hungria e
Cazaquistão também estão promovendo a reestatização.
Segundo o estudo, atualmente quase a metade (48%)
das pessoas no mundo que já deveriam estar aposentadas não
recebe benefício. E, para muitos que a recebem, a aposentadoria
está abaixo dos níveis adequados. Entre os que trabalham, apenas
42% devem contar com a cobertura no futuro, e com valores ainda
mais baixos.
O documento lembra que, entre 1981 e 2008, 11 países da América
Latina privatizaram completa ou parcialmente seus sistemas
públicos de aposentadorias baseadas na contribuição dos
segurados. As reformas se espalharam, no final da década de 1990
e início do novo milênio, pela maioria dos países da Europa
Central e Oriental, onde uma parte das contribuições (até um
terço, em lugares como a Hungria, Polônia e Eslováquia) foi
excluída do regime público e destinada a contas individuais
obrigatórias, de gestão privada. “Durante os últimos anos, essas
privatizações chegaram a um impasse e, em alguns países, foram
revertidas, com a retomada ou a ampliação da participação do
Estado no financiamento dos benefícios”, diz o relatório.
No Chile, passados 35 anos da adoção do “novo paradigma”,
marchas de manifestantes vieram às ruas protestar por não terem
conseguido se aposentar, ou estarem recebendo pensões
baixíssimas. O novo sistema chileno não deu conta de aumentar a
cobertura conforme o esperado, nem foi capaz de assegurar
rendimento adequado na velhice. Especialmente para aqueles com
salários baixos e carreiras mais curtas, ou que tiveram de ser
interrompidas (em particular para as mulheres), o que os impediu
de arcar com as contribuições de forma regular ao longo do
tempo.
A partir de 2008, o modelo foi complementado por dois novos
regimes públicos: uma pensão básica universal para 60% da
população com menor renda e sem aposentadoria (Pensão Básica
Solidária – PBS) ou um adicional para complementar
aposentadorias de valores muito baixos (Aporte Previsional
Solidário – APS). Além disso, a presidente Michelle Bachelet
decidiu criar uma AFP (ou fundo de pensão) pública, que também
terá o papel de aumentar a fiscalização das AFPs privadas.
Inflexões similares ou rereformas – como as chama
o documento da OIT – aconteceram na Argentina, em 2008, na
Bolívia, em 2010, e no Uruguai, em 2013. Enquanto os dois
primeiros eliminaram completamente o pilar privado, o Uruguai e
o Chile o mantiveram, mas sob supervisão mais rígida, e
complementado pelo poder público.
Se na Argentina e no Chile a intenção das rereformas foi
assegurar um piso de proteção para todos que atingissem a
velhice, outros países, em particular os da Europa Central e
Oriental, buscaram enfrentar o déficite a dívida pública,
agravados pelo sistema de seguridade privado. Para isso, durante
os anos da crise, a maioria dos países na Europa reduziu de
forma temporária ou permanente o fluxo de contribuições aos
fundos de pensão privados, mantendoos nos sistemas públicos.
Na Polônia, Hungria e Eslováquia, a privatização provocou um
incremento anual de cerca de 1,5% do PIB aos déficits nacionais.
Como os fundos de pensão privados investiam a maior parte dos
seus ativos em títulos do governo para cobrir, entre outras
coisas, os seus déficits causados pelos montantes de
contribuições nos próprios fundos de pensão privados, alguns
governos agiram para interromper esse fluxo circular de
dinheiro, que parecia beneficiar apenas os administradores
privados. O governo polonês, por exemplo, cortou as
contribuições de 7,3% para 2,9% sobre os salários e tornou a
participação voluntária (com os integrantes devendo confirmar se
preferiam ficar ou passar para o financiamento público). Em
2014, resolveu transferir todos os ativos mantidos em títulos do
governo a uma instituição de seguridade, proibindo quaisquer
novos investimentos.
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BNDES, NO OLHO DO FURACÃO
A CHEGADA DA NOVA DIRETORIA, COMPOSTA POR EXECUTIVOS DE MERCADO ADEPTOS DA
DOUTRINA NEOLIBERAL, FAZ EMERGIR O VELHO DEBATE SOBRE O PAPEL
DO ESTADO – E DO BNDES – NA INDUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO E DO CRESCIMENTO
ECONÔMICO.
CRISTINA CHACEL
Desde
que assumiu a presidência do BNDES, em 1º de junho de 2016, a economista
Maria Silvia Bastos Marques é refém de um paradoxo. Executiva das mais
prestigiadas do país, perfeita tradução de mulher de sucesso, primeira e
única a ocupar a presidência da lendária Companhia Siderúrgica Nacional
(CSN), Maria Silvia vive o dilema de implantar o novo sem falar no antigo.
Ela veio para mudar. Essas mudanças devolvem ao banco a orientação
neoliberal que dominou a instituição nos anos 1990 e são antagônicas à
gestão desenvolvimentista de Luciano Coutinho.
Têm
sido dias difíceis para todos no BNDES. Ao público externo, seus superiores
e interlocutores no governo Temer, a presidente Maria Silvia tem que mostrar
coragem e pulso firme na tomada de decisões. Para o público interno, um
contingente de 2.855 servidores públicos, 81% deles profissionais de nível
superior, administradores, advogados e economistas altamente qualificados,
precisa afirmar a nova orientação, sem, contudo, desqualificar a experiência
pregressa, da qual eles se orgulham, acenando com a bandeira branca da boa
convivência e da cooperação. Compreendese o desconforto em abordar o
passado. Procurado, o BNDES preferiu não participar desta reportagem da Por
Sinal.
FOGO CRUZADO
A vida segue, mas o mundo lá fora não tem ajudado. Aqui e ali, ganham espaço
crescente na imprensa críticas ferozes à administração do expresidente
Luciano Coutinho, sobretudo a partir de 2008, quando o banco serviu como
antídoto à crise financeira que desabou sobre o mundo, adotando medidas
anticíclicas, ao custo do crescimento da dívida pública. A essas críticas,
somaramse as notícias de irregularidades envolvendo a concessão
de empréstimos supostamente seletivos a empreiteiras nacionais implicadas na
Operação LavaJato, em contratos de exportação de bens e serviços para países
do Cone Sul. Da nova diretoria, a massa de empregados esperava uma defesa
firme da instituição. “A casa está em chamas”, revelou, numa tarde da
primeira semana de outubro, o economista Thiago Mitidieri, presidente da
Associação de Funcionários do BNDES. A declaração foi feita dois dias após a
publicação de um anúncio de página inteira, nos jornais de grande circulação
do país, em que o governo Temer condena a administração Dilma Rousseff e,
nos dois últimos parágrafos, atira contra o BNDES.
A propaganda oficial acusa o banco de ter emprestado R$ 8,3 bilhões, entre
2003 e 2013, a juros subsidiados, para a construção de obras de
infraestrutura em outros países, em prejuízo do desenvolvimento nacional.
Diz que “o Tesouro Nacional se endividou em R$ 323 bilhõespara emprestar
dinheiro ao BNDES”, que por sua vez beneficiou majoritariamente empresas de
grande porte (mais de 60%) e que o saldo devedor do banco com o Tesouro é
superior a R$ 500 bilhões, o equivalente a 10% do PIB.
Os funcionários saíram em defesa do banco. Em nota de 11 parágrafos, as
associações dos funcionários do Sistema BNDES, que inclui Finame e BNDESPar,
expressaram “perplexidade com os ataques descabidos” e fizeram questão de
qualificar a instituição: “As decisões do BNDES são tomadas de forma
impessoal e técnica, depois da avaliação de ao menos duas equipes de análise
e dois colegiados, num processo que passa pelo exame de pelo menos 50
pessoas.”
Sobre a acusação de que o banco privilegiou os investimentos em
infraestrutura no exterior, a nota é clara: “O BNDES tem uma carteira com
mais de 300 operações de projectfinance voltados para a infraestrutura
nacional. Os desembolsos para infraestrutura entre 2007 e 2015 atingiram
quase R$ 600 bilhões, a valores de dezembro de 2015. No ano passado, os
desembolsos representaram 40% do total. O financiamento às exportações
respondeu por cerca de 4,5% dos desembolsos totais do BNDES. De fato, nunca
concorreram com o investimento no Brasil.”
Diante do exposto, a nova diretoria devolveu três parágrafos, nos quais
reconhece o desconforto causado pelo anúncio do governo, informa que só
soube do mesmo pelos jornais, mostrase compreensiva “que a Casa tenha se
sentido atingida neste momento de grande turbulência, em que o BNDES vem
sendo citado em reportagens sobre delações e processos de investigação”, e
sai em defesa do governo: “O objetivo do anúncio foi expor a grave situação
fiscal encontrada pelo atual governo – e não atacar o BNDES.”
Não foi suficiente para acalmar os ânimos dos funcionários. Desde que Maria
Silvia e equipe assumiram a diretoria do banco, a situação é tensa. Houve
boato de demissões seriam mandados 800 embora, que demorou a ser desmentido.
E outubro é o delicado mês de negociação do acordo coletivo de trabalho.
Dias depois da troca de notas, o Ministério Público Federal denunciava o
expresidente Lula por receber propina para facilitar empréstimos da
empreiteira Odebrecht no BNDES.
A diretoria, desta vez, deu uma resposta mais curta, de três linhas,
divulgada em cadeia nacional de televisão, informando estar cooperando com
as autoridades e comunicando o anúncio, no dia seguinte, de novas regras
para os contratos de financiamento às exportações de bens e serviços. A
dúvida pairou no ar.
Será que os contratos vigentes são irregulares e estão contaminados de
malfeitos? Coube aos funcionários, por meio de suas associações, sair em
defesa da instituição, repudiando, em nova nota, “as ilações indevidas
feitas na imprensa de que as mudanças anunciadas esta semana pelo BNDES no
financiamento às exportações tenham sido motivadas pela identificação de
irregularidades em 25 dos 47 contratos dessa carteira”.
A BOLA DA VEZ?
Esses são apenas exemplos mais recentes do desgaste crescente entre os
funcionários e a nova diretoria do BNDES. O ambiente faz precipitar uma
indagação: Depois da devassa na Petrobras, será o BNDES a bola da vez? Na
berlinda, o banco está desde 2015, quando uma CPI na Câmara Federal
investigou e nada encontrou a condenar. Também no ano passado, a instituição
foi alvo de uma auditoria do Tribunal de Contas da União, o TCU. No
relatório de 93 páginas, nada se encontra além de apontamentos quanto a
procedimentos do banco que poderiam ser aprimorados em nome da transparência
e da boa avaliação de projetos. Mas nenhuma irregularidade, efetivamente. O
que contribui para um clima de desconfiança.
“O banco é um instrumento estratégico, cumpriu seu papel de governo. A
política brasileira de exportação vem da década de 1980. O BNDES começou a
apoiar as exportações de bens e serviços de engenharia nos anos 1990. Em
2007, o BNDES herdou as funções da antiga Carteira de Comércio Exterior, a
Cacex, do Banco do Brasil, e reativou a linha de financiamento a Angola,
dentro da contapetróleo, o que também atendia à política externa do governo
Lula, inspirada na tradição da independência diplomática dos anos 1960,
inaugurada por San Thiago Dantas”, observa Thiago Mitidieri. Para ele, as
relações internacionais não podem ser reguladas pelo mercado. São relações
de governo. “Os contratos com
a Venezuela fazem parte das relações do Brasil com o Hemisfério Sul. O mesmo
vale para os paísesmembros dos Brics (Rússia, China, Índia e África do Sul).
Em operações garantidas pelo Tesouro, o BNDES financia obras nesses países
realizadas por empresas brasileiras”, ressalta. A confusão em torno do
financiamento às exportações é grande. O comunicado do governo que tanto
ofendeu os empregados do banco não ajuda a esclarecer. Difunde a ideia de
que essas operações são feitas em detrimento do desenvolvimento do Brasil e
ganham tintas incandescentes quando entre os paísesmercado dessas empresas
está a indesejável Venezuela e a mítica ilha de Cuba.
“As críticas são muito ruins. Falase que o BNDES financiou o porto de Cuba.
Ele não financiou o porto de Cuba. Financiou a exportação de bens e serviços
de engenharia brasileira para o porto em Cuba. Uma operação que gera emprego
para o Brasil, desembolsada em reais e paga pelo povo cubano. Financiar
exportação não tira recursos da infraestrutura interna. Gera divisas e
aumenta a capacidade de crescimento. O banco tem operação até muito
conservadora. Isso se traduz na inadimplência baixa. O ataque às exportações
atinge uma institucionalidade criada nos anos 1990, não foi no governo do
PT”, comenta um profissional de administração, com dez anos de casa, que
anda submerso, com as barbas de molho.
OS NOVE ANOS DA GESTÃO COUTINHO
A Por Sinal teve acesso a um documento
ainda inédito que consolida os resultados obtidos em nove anos
de gestão de Luciano Coutinho no BNDES, período entre os anos
2007 e 2015. O documento informa que o banco tem ativos e
passivos de longo prazo devidamente alinhados e que seu
“desempenho econômicofinanceiro mostra que a missão de apoiar o
desenvolvimento demanda sustentabilidade financeira, capaz de
resistir a crises severas como a atual”.
Registra, ainda, a rentabilidade das participações societárias,
via BNDESPar, cuja carteira acumula R$ 60,2 bilhões, em valor de
mercado. E sublinha que os custos fiscais dos aportes do Tesouro
entre 2008 e 2014 não só contribuíram para elevar a taxa de
investimento e o crescimento da economia, como também podem ser
anulados ou superados pelos “benefícios fiscais decorrentes do
efeito multiplicador dos investimentos sobre a renda”.
O ANO CRÍTICO
No capítulo dos Desembolsos, o estudo
deixa claro o impacto da crise financeira que abalou o mundo: o
número de operações indiretas, que incluem Finame, Cartão BNDES
e BNDES Automático, passou de 197,5 mil, em 2007, para mais de 1
milhão, em 2013 e 2014, tendo sofrido queda em 2015. E que as
liberações para as micro, pequenas e médias empresas quase
triplicaram de 2007 a 2013, tendo sofrido queda expressiva em
2015, ainda que menos forte que a média. Assinala que, excluindo
infraestrutura, exportações e setor público, quase metade dos
desembolsos do BNDES foi para as MPMEs. A peça, de linhagem
desenvolvimentista purosangue, apresenta também um resumo da
efetividade e dos resultados da atuação do BNDES nesses nove
anos. Atesta que, de 2007 a 2015, os desembolsos do banco
“criaram ou mantiveram 24 milhões de empregos. Considerando o
total do investimento alavancado, tal indicador foi de 33
milhões.
A geração de empregos foi crescente até 2013, estável em 2014,
caindo em 2015”.
Os resultados refletem a análise de Antonio Alves Junior:
“Nesse período em que o BNDES elevou os financiamentos, o comportamento
da dívida pública era de estabilidade. Outras coisas contribuem
para reduzir. O país financia, tem investimento, tem crescimento
do PIB, aumento da arrecadação. E protelou o mergulho na
recessão. Se não fosse o setor público, os bancos públicos, que
equivalem a 50% do sistema financeiro nacional, nós não teríamos
só uma crise de crédito, mas uma crise bancária. Quando os
bancos privados contraem crédito, acontecem efeitos recessivos
na economia.”
|
O
ESTADO E O MERCADO
A chegada da nova diretoria, composta por executivos de mercado adeptos da
doutrina neoliberal, faz emergir o velho debate sobre o papel do Estado – e
do BNDES – na indução do desenvolvimento e do crescimento econômico. Dez
entre dez economistas da instituição sabem como dois mais dois são quatro,
que tudo o que se decidir, sob a nova direção, atenderá ao princípio menos
Estado, mais mercado. Privatizações e concessões de serviços públicos
voltaram à pauta.
“O BNDES é uma instituição do Estado. Quando foi chamado a fazer as
privatizações, ele fez. O projeto deles é reduzir o banco, diminuir. A visão
deles é a de que o banco atrapalha o mercado de capitais, de que basta tirar
o banco para os negócios florescerem. Parte da atual administração entende
que o banco não deveria sequer existir”, dispara um desses economistas.
Professor de Macroeconomia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
o economista Antonio José Alves Junior acompanha de perto o BNDES desde
2004, sempre de mirantes privilegiados. Desde então e nesta ordem, chefiou a
Assessoria Econômica de Guido Mantega no Ministério do Planejamento, a
Assessoria Econômica de Dilma Rousseff na Casa Civil e o escritório do BNDES
em Brasília, que atende pelo nome de Departamento de Relações com o Governo
(Dereg). De 2013 a 2015, assessorou diretamente Luciano Coutinho na
presidência do banco, no Rio. De seu campo de visão, ele resume em três
metas o que pensa ser o papel de um banco público de desenvolvimento:
1) Cumprir atividades comuns de uma economia de mercado que o setor privado
não cumpre, caso dos empréstimos de longo prazo para indução do
desenvolvimento econômico.
2) Cumprir atividades fundamentais para a indução do desenvolvimento,
ligadas às transformações do país, que são de alto risco e retorno incerto
caso do financiamento à inovação.
3) Cumprir uma função que o setor privado normalmente cumpre, mas que por
alguma razão deixa de cumprir – caso das medidas anticíclicas adotadas a
partir de 2008, para enfrentar um momento de crise econômica.
Marcelo Miterhof é economista de carreira do banco há quase 15 anos. Foi
aluno de Luciano Coutinho na Unicamp, e nos últimos anos o assessorou no
BNDES. De 2012 a 2015, ganhou notoriedade com uma coluna semanal na Folha de
S.Paulo. Didático, ele explica por que há uma falsa dicotomia entre Estado e
mercado, não sem salientar que esta é uma opinião sua e não,
necessariamente, do BNDES:
“Tem gente que acredita que o mercado é capaz de resolver tudo. Essa é uma
ideia platônica, uma idealização. A ’mão invisível’ do mercado não tem
correspondência com a realidade, é algo de um realismo fantástico. Mas ela é
traduzida pelo princípio de Bernard Mandeville, de que vícios privados
correspondem a benefícios públicos. Faça o melhor pra você, que será o
melhor pra todo mundo. Essa máxima só seria verdadeira se a competição fosse
capaz de dar conta não só da busca pela eficiência, mas também daquilo que é
típico da cooperação, que é a proteção social e a sobrevivência.”
Miterhof cita estudo de Mariana Mazucto, da Universidade de Sussex,
Inglaterra, que fala de encontros do Estado com o mercado que resultaram em
inovação e transformação para o mundo contemporâneo:
“O algoritmo do Google foi desenvolvido com gastos da Defesa do governo
americano. O GPS idem. A internet idem. O protocolo da internet é de 1974.
Levou dez anos para se tornar real e outros dez para se tornar comercial.
Então, como você sustenta esses 20 anos, até gerar dinheiro? Por exemplo,
com compras públicas, que diluem o risco da inovação por todo o mundo. E,
quando não é imposto, é banco público. É preciso não perder de vista que os
mercados não são obras da natureza. São obras de empresas e seus governos. A
questão é qual o balanço adequado entre competição e cooperação, entre
mercado e Estado.”
FATOS E VERSÕES
Entre as principais críticas à gestão de Luciano Coutinho no BNDES estão as
medidas anticíclicas. O ano era o de 2008. A crise financeira internacional
asfixia o mercado de crédito no mundo inteiro. O Brasil não está imune à
epidemia. Os bancos privados se retraem e as torneiras secam. O dinheiro
some do mercado.
Em uma decisão de política econômica, o governo faz do BNDES seu principal
agente de crédito, encarregado de manter a economia ativa. Sem fundos para
tanto, o BNDES passa a receber recursos do Tesouro. Sem receita fiscal para
tanto, o Tesouro emite títulos da dívida pública. Capta dinheiro caro, à
taxa básica anual, a Selic, que depois de mais de um ano estacionada em
14,25% caiu 25 pontos percentuais, e repassa para o BNDES emprestar pela
TJLP, a Taxa de Juros de Longo Prazo, de 7,5%, ou a excepcionais 2,5%, caso
dos empréstimos enquadrados no Programa de Sustentação de Investimentos, o
PSI.
A diferença entre o dinheiro comprado caro e vendido barato é o que se
costuma chamar de subsídio. De 2008 a 2014, o Tesouro repassou R$ 420
bilhões ao BNDES. O que o país ganhou com isso? O professor Antonio Alves
Junior responde:
“A economia estava lutando contra consequências graves da maior crise
econômica a que o mundo já assistiu. Muito maior que a de 1930. A crise de
2008 começou mais violenta, com a desvalorização dos ativos e a ameaça de
quebra de grandes instituições financeiras. No mundo inteiro, houve
movimento contracíclico de compensação, para salvar o sistema financeiro.
Senão ia ser uma quebradeira geral. No Brasil, quase por razões acidentais,
como nosso sistema financeiro privado não opera em economia globalizada e
não financia a longo prazo e o mercado de capitais é ainda incipiente, não
sofremos o impacto da crise da mesma forma que a Europa. Mas do dia para a
noite vimos as torneiras se fecharem, os preços de commodities como
petróleo, carne, ferro e soja despencarem, o financiamento externo secar. O
nosso sistema bancário se retraiu fortemente. Não fosse o peso do setor
público, teríamos uma crise de crédito sem precedentes no país.”
Ao olhar mais ligeiro, da aritmética básica, o que o governo fez foi
financiar o desenvolvimento à custa do endividamento. Mas para os
economistas da escola desenvolvimentista, da qual Luciano Continho é um dos
expoentes, a operação faz todo o sentido. Durante depoimento na CPI da
Petrobras, o próprio Coutinho admitiu que pode ter havido um erro de dose na
taxa do PSI. Fosse algo mais alta, exigiria menos equalização e menos
empréstimo do Tesouro. Mas não houve erro de direção. Miterhof concorda:
“O crescimento do BNDES foi uma importante arma para a gestão da política
econômica durante um longo tempo. O Brasil tem o problema de juros altos e
restrição de crédito, mas mesmo que não tivesse, inclusive nos países
desenvolvidos, o mercado não consegue ser plenamente eficiente para fornecer
crédito de longo prazo necessário ao investimento em infraestrutura. Os
Estados Unidos, que têm o mercado de capitais mais profundo, têm déficit de
infraestrutura. A institucionalidade com bancos públicos é positiva para
contrabalançar os soluços e as dificuldades de assumir risco do setor
privado.”
O economista Antonio Alves Junior acrescenta:
“Há mais fumaça que fogo, quando falam em crise da dívida pública ligada ao
setor bancário e à ausência de lastro. Quando você olha os números, vê uma
certa estabilidade da dívida pública.
Nossa dívida pública sai do controle para valer em 2015, no primeiro ano do
governo da Dilma, quando o Joaquim Levy começa a política da austeridade e a
arrecadação tributária desaba. Ele derrubou o investimento público. Teve um
efeito recessivo forte. E, curiosamente, essas medidas não sanearam.”
O Tribunal de Contas da União enxerga o mundo de outro mirante. Por meio de
seu vicepresidente, ministro Raimundo Carreiro, propôs que o BNDES
devolvesse R$ 100 bilhões aos cofres do Tesouro. Disse ele ao Portal do TCU:
“Os empréstimos totalizaram cerca de R$ 500 bilhões, tendo sido autorizados
pelo Ministério da Fazenda por meio de emissão direta de títulos públicos ao
BNDES. Assim, há controvérsias perante a LRF (Lei de Responsabilidade
Fiscal), tanto sobre a legalidade dessas injeções de recursos do governo
federal no banco quanto sobre a devolução ora anunciada.” O BNDES está
disposto a realizar a devolução antecipada, mas esbarra no artigo 37 da Lei
de Responsabilidade Fiscal, que veda a antecipação. Mas o simples fato de se
dispor a antecipar é prova, segundo Thiago Mitidieri, de que o banco goza de
boa saúde financeira, tem liquidez. Mitidieri é um técnico. Trabalha no
banco desde 2008. E não esconde críticas à administração anterior:
“O BNDES cresceu muito, a meta era desembolso. Perdeu qualidade. Nossa
questão é trabalhar com planejamento e o motor do crescimento não foi
planejado. Falta ao Brasil um projeto de país.”
FELIPE REZENDE | PROFESSOR DA HOBART AND
WILLIAM SMITH COLLEGES
"VIVEMOS UMA HISTERIA FISCAL"
O economista Felipe Rezende é um craque em dívida pública.
Mestre e doutor pela University of MissouriKansas City, ele é
discípulo e seguidor das teorias fundadas por Hymam Minsky,
influente economista póskeynesiano, morto em 1996, conhecido por
seus estudos sobre crises financeiras. Há dez anos ele vive nos
Estados Unidos, os últimos seis como professor da Hobart and
William Smith Colleges, de Nova York. É de lá que ele olha o
mundo, como um todo, e o Brasil, em particular.
Associado ao Minds Institute, Felipe coordena há
três anos pesquisa financiada pela Fundação Ford, que tem por
finalidade identificar as fontes de fragilidade financeira da
economia brasileira e as razões da concentração dos bancos
privados do país no mercado de curto prazo. Com a autoridade de
quem estuda dívida pública e acompanha as taxas de juros nos
principais mercados do mundo, diariamente, ele adverte:
“Vivemos no Brasil uma histeria fiscal
injustificável. De 2007 a 2014, a dívida pública do Japão
aumentou de 183% para 246% do PIB. No mesmo recorte de tempo,
nos Estados Unidos, subiu de 64% para 105% do PIB. E no Reino
Unido, em igual período, o comprometimento foi de 44% para 89%
do PIB. Esses dados, coletados pelo FMI, refletem o desempenho
de países em crise. Vários países tiveram déficits nominais de
cerca de 10% do PIB, nos últimos 15 anos, e apresentaram
elevação da dívida pública em decorrência de diferentes
fatores.”
O aumento do endividamento, como exposto, não é
exclusividade do Brasil, continua Felipe Rezende: “Não é
jabuticaba. O Brasil apresentou resultados primários positivos
por mais de uma década, até 2013. Em 2014, a balança entre
receita e despesa, onde não entram os juros da dívida pública,
ficou negativa em 32,5 bilhões, o equivalente a 0,57% do PIB. Em
2015, com o quadro de recessão já configurado, o déficit
primário negativo saltou para 111,2 bilhões, ou 1,88% do PIB,
refletindo o ciclo de queda da atividade econômica, com produção
baixa, menos arrecadação tributária, desemprego e custos
sociais, sensíveis ao ciclo econômico. Em um recorte de tempo
acrescido de um ano, em relação ao período registrado pelo FMI,
de 2007 a 2015, a dívida pública brasileira cresceu 15%. De
56,7% para 66,2% do PIB.”
Rezende observa que há uma disputa entre analistas da cena
econômica sobre o uso, muito comum no mercado, do resultado da
dívida pública como indicador de solvência de um país. Ele diz
que não se pode comparar um país como o Brasil, que é emissor de
moeda, a um país usuário de moeda, sem soberania, caso da
Grécia. Contesta a tese, em voga no Brasil, de que as contas
públicas estão fora de controle por erros da matriz econômica,
que empurraram o país para uma crise fiscal que foge ao alcance
da política monetária no combate à inflação.
COMBINAÇÃO EXPLOSIVA
Por este entendimento, o remédio para os males da nossa economia
é antes de tudo um severo ajuste fiscal, que teria por
consequência o aumento dos índices de confiança, a queda dos
juros e a redução do custo médio da dívida e do déficit nominal,
que inclui o resultado primário e os juros nominais, e que em
2015 bateu a casa dos 10,34% do PIB. Rezende argumenta:
“Um aperto fiscal em uma recessão só piora as coisas. A
combinação da austeridade fiscal com juros altos aumenta a
desigualdade, reduzindo a renda dos mais pobres e elevando os
rendimentos dos mais ricos. Provocam distorções no setor
produtivo, inviabilizam investimentos, aumentam a inadimplência
e agravam o desemprego. Os dados confirmam que o déficit
primário no Brasil não resulta do descontrole das contas
públicas, mas da recessão.” Na prova dos nove, Felipe Rezende
observa que a dívida pública brasileira, hoje, corresponde a 70%
do PIB. Deste montante, 9% são transferências de títulos
públicos para os bancos públicos e 20% são aquisições de dólar
para compor as reservas internacionais. Ou seja, arredondando,
para facilitar o entendimento, essas duas linhas operacionais
respondem por 30% da dívida bruta, indicando um endividamento
real, efetivamente oriundo dos gastos públicos, de 40% do PIB.
“Isso quer dizer tãosomente que a dívida pública brasileira, de
40% do PIB, está em linha com a de países que têm algum grau de
investimento. Tratase de um patamar aceitável”, pondera
|
PONTE PARA O FUTURO
Muita água ainda vai rolar debaixo dessa ponte até o BNDES consolidar
sua nova identidade, que ainda não se pode enxergar a olho nu. As cartas
de princípios já foram postas na mesa. Menos Estado, mais mercado é o
pilar desses princípios. Os desafios são muitos, e muitas perguntas
ficaram sem resposta. A nova diretoria anunciou a revisão de contratos
em vigor, a possibilidade de suspensão de alguns deles, e maior rigor na
análise dos projetos, que não serão mais considerados à luz apenas da
parte financiada, mas como um todo.
A decisão de acabar com os empréstimosponte surpreendeu os técnicos da
Casa. Esse tipo de desembolso é uma antecipação de curto prazo, feita a
juros mais altos e garantias maiores, para viabilizar a partida do
empreendimento enquanto não estão concluídas as análises de longo prazo,
que levam tempo. Sem a ponte, o empreendimento atrasa.
Ao que se comenta nos corredores do BNDES, a expectativa da nova
diretoria é de que o mercado privado preencha esta lacuna. Bem coerente
com o princípio menos Estado, mais mercado. Vozes desses corredores do
banco acham que se trata de uma ilusão imaginar que no fundo do poço de
uma recessão, o setor privado, cuja cultura é do curto prazo, vá
investir em obras de alto risco e longo período de maturação. Quem viver
verá. Com o país mergulhado em denúncias de corrupção e em uma crise
política que só traz mais incertezas, é difícil imaginar qual modelo de
desenvolvimento será adotado daqui para frente, em especial na área de
infraestrutura, um setor oligopolizado, concentrado em meia dúzia de
empreiteiras, todas elas implicadas na Operação LavaJato e que, por esta
razão, estão impedidas de participar de novas obras públicas. O Brasil
vai parar de crescer? Quem ocupará este mercado milionário de dimensões
continentais? A resposta mais rasa é de que serão empresas estrangeiras.
Quem viver verá.
Com o país mergulhado em denúncias de corrupção e em uma crise política
que só traz mais incertezas, é difícil imaginar qual modelo de
desenvolvimento será adotado daqui para frente, em especial na área de
infraestrutura, um setor oligopolizado, concentrado em meia dúzia de
empreiteiras, todas elas implicadas na Operação LavaJato e que, por esta
razão, estão impedidas de participar de novas obras públicas. O Brasil
vai parar de crescer? Quem ocupará este mercado milionário de dimensões
continentais? A resposta mais rasa é de que serão empresas estrangeiras.
Quem viver verá.
MARCELO MITERHOF | ECONOMISTA DO BNDES
"UM BANCO PÚBLICO SINGULAR"
Não haveria nada de diferente no BNDES em relação aos demais
bancos de desenvolvimento espalhados pelo mundo, não fosse uma
prática popular e peculiar do Brasil que atende pelo nome de
juros altos. Em análise comparativa da instituição com suas
congêneres no exterior, Marcelo Miterhof conclui que a
singularidade do BNDES, aquilo que só ele faz, está na sua
função de atenuar o que ele chama de falha macroeconômica
estrutural, fornecendo crédito de longo prazo em reais a taxas
compatíveis à rentabilidade e à maturação dos projetos de
desenvolvimento.
“O Brasil tem uma economia de restrição de crédito. Se a gente
olha a carteira do BNDES em relação ao PIB do Brasil, vai ver
que ela está em linha, mas um pouco abaixo dos outros bancos. O
KfW, da Alemanha, um dos países mais eficientes do mundo, tem
uma carteira maior em relação ao PIB. O banco da China, a maior
potência emergente do planeta, a mesma coisa. Mas quando se fala
em participação dos bancos no estoque de crédito total do país,
o quadro muda. O BNDES tem um papel singular. Tem uma proporção
no crédito muito maior que a dos outros bancos”, analisa o
economista.
Ele ilustra a sua análise com números expressivos. A carteira do
KfW equivale a 13,7% do PIB alemão, mas sua participação no
mercado de crédito é de 12,6%. O CDB da China tem 12,5% no PIB e
7,4% no estoque de crédito. Já o BNDES, com 11,8% do PIB, quase
dobra sua participação quando comparada ao estoque de crédito
ofertado no país – 21,7%. Isso acontece porque o crédito total
oferecido nesses países é maior que o PIB, mais de 100%,
enquanto que no Brasil é muito menor, está na casa dos 50%,
porque as taxas de juros são muito altas.
“O BNDES tem essa participação singular no crédito porque
corrige uma falha macroeconômica estrutural que é a alta taxa de
juros. O que o BNDES faz é fixar prazos e um patamar de juros
minimamente compatíveis aos praticados no mundo, e com prazos de
maturação e o retorno esperado dos projetos.”
PADRÃO MUNDIAL
Enquanto a Selic está no patamar de 14%, a TJLP, praticada nos
empréstimos do BNDES, acompanha, grosso modo, o IPCA, de modo a
oferecer uma taxa de juros real zero, que é o padrão mundial.
Assim, o investimento no Brasil não é prejudicado por um custo
demasiado elevado. Mas essa diferença é o que se chama de
subsídio. Miterhof questiona: “A diferença entre a Selic e a
TJLP parece sugerir que há um subsídio. Mas onde está o
subsídio? Na Selic ou na TJLP? No senso comum, o subsídio está
na TJLP. Eu tenho as minhas dúvidas. Nem uma nem outra são taxas
de mercado. Ambas são fixadas pela equipe econômica. A Selic,
pelo Banco Central e a TJLP, pelo Comitê Monetário Nacional.
Ambas são taxas de governo, da equipe econômica, da autoridade
monetária, instrumentos de política econômica.”
O fato de não representar subsídio, no entendimento de Miterhof,
não significa que a TJLP não tenha um custo fiscal. Em 2008, com
a crise internacional, a fonte constitucional do BNDES, que é o
montante equivalente a 40% do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT),
já não provia recursos suficientes para dar conta da demanda de
investimento do país.
Os números confirmam. A taxa de investimento, de 2000 a 2007,
representou 17% do PIB – aumentando. De 2008 a 2014 – que é o
período que o BNDES recebe empréstimos do Tesouro, ela bateu a
casa dos 20% do PIB, um crescimento de três pontos percentuais.
Por isso, o BNDES precisou de mais dinheiro para sustentar o
financiamento dos investimentos.
“O debate, do ponto de vista liberal, é dizer que o Brasil tem
juros altos por causa do BNDES, porque o BNDES entope os canais
de transmissão da política monetária, tira parte do crédito do
alcance da Selic. Ao mesmo tempo, argumentam que o BNDES
seleciona os melhores clientes, e o mercado, ficando com os
piores, tem que cobrar mais. Tratase de uma contradição. Se o
BNDES é seletivo, não entope”, conclui Miterhof.
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ENTREVISTA ILAN GOLDFAJN
PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL
“Hoje, se aproximar da sociedade é uma prioridade do
BC”
Até março deste ano economistachefe de um dos maiores bancos
brasileiros, o exdiretor e novo presidente do Banco Central recebeu a
Por Sinal no dia 31 de outubro, em Brasília. De que forma é possível
melhorar
a fiscalização do BC evitando, por exemplo, a evasão de recursos não
declarados para o exterior? O Banco Central tem agências suficientes
para atender às demandas de um país do tamanho do Brasil? Por que os
bancos estão lucrando tanto em plena rise econômica, enquanto o setor
produtivo encolhe? A taxa de juros é o único instrumento para controlar
a inflação?
Confira nesta entrevista a opinião de Ilan Goldfajn sobre estas e outras
questões que preocupam não apenas os servidores do BC, mas, certamente,
os leitores da Por Sinal.
O Sinal realiza em novembro, sua 27ª Assembleia Nacional
Deliberativa. Este ano, escolhemos como tema “Banco Central do Brasil:
órgão de Estado a serviço da sociedade”. Estamos a serviço da sociedade?
Estamos, mas sempre podemos melhorar. O Banco Central está a serviço da
sociedade por dois grandes pilares. Primeiro, por meio de nossa busca de
baixar a inflação. À medida que o BC consegue executar uma política
econômica que faz a sociedade conviver com uma inflação menor, isso gera
um impacto de crescimento e também um impacto de distribuição de renda.
Todo mundo no Brasil já sabe, há tempos, que inflação alta prejudica os
mais pobres, muito mais que os mais ricos. Essa é a primeira parte. Se
conseguirmos, de fato, levar a inflação de volta à meta, vamos prestar
grande serviço à população brasileira, tanto pela retomada da confiança
como pela distribuição de renda.
O segundo ponto é o papel do Banco Central como regulador do sistema
financeiro. Uma sociedade não pode funcionar bem sem a higidez dos
bancos, do sistema financeiro. Esta crise que estamos vivendo, já alguns
anos, seria bem mais aguda se não tivéssemos o pilar do sistema bancário
consolidado. A experiência internacional mostra que crises globais
quando viram, ao mesmo tempo, crises bancárias, tornam o impacto muito
maior. No Brasil, o Banco Central – falo das diretorias, dos servidores
– conseguiu manter o sistema bancário sólido, líquido e capitalizado. E
isso é relevante. Finalmente, outra questão que estamos avançando a
passos largos é a nossa cidadania financeira.
E o que seria isso?
A cidadania financeira é uma frente de trabalho à qual a Diretoria de
Relações Institucionais e Cidadania (Direc) tem se dedicado e envolve a
educação financeira, a inclusão e a melhoria do atendimento ao público.
Fora isso, a comunicação do Banco, recentemente, entrou nas mídias
sociais e em áreas que, eu diria, são mais inclusivas, como Facebook e
Twitter.
Na área da educação financeira, fizemos um acordo com o Exército e
estamos fechando acordos com outras instituições, de forma a chegar cada
vez mais na população. Os cursos ajudam o cidadão a entender como
funciona o sistema financeiro, como fazer cálculos, se proteger e tomar
decisões melhores.
Saiu esta semana matéria dizendo que o brasileiro é o povo que menos
poupa. Isso tem a ver com educação financeira?
Tem. Ensinar a pessoa que ela precisa se preparar e guardar dinheiro
para períodos sem trabalho, períodos mais difíceis. Mas o Brasil não
poupa também por questões macroeconômicas. Não temos trabalhado
macroeconomicamente para puxar a poupança do país e não apenas de cada
um, individualmente.
Em resumo, o senhor está dizendo que sob sua gestão o BC está
buscando se aproximar mais da sociedade?
Não quero comparar com gestões anteriores. O que posso dizer é que para
nós, hoje, é uma prioridade. Vocês têm observado, ao longo desses
últimos meses, que estamos cada vez mais entrando nessa linha.
Trabalhando com as ouvidorias dos bancos, fechando acordos para fora do
BC.
No Brasil, como o senhor já disse, somos muito fracos em poupança.
Mesmo na época de crescimento do governo Lula, a taxa de juros baixou a
8,75% (chegou a 7,25% no governo Dilma, entre outubro de 2012 e março de
2013), mas ainda assim um patamar alto. Essa falta de poupança no país é
um dos motivos pelo qual não se conseguiu baixar mais a inflação, mesmo
em período de crescimento econômico?
Eu diria que uma das formas de entender a taxa de juros é a relação da
poupança com o investimento. Se você tem pouca poupança, ela acaba
gerando uma taxa de juros de equilíbrio maior. Países emergentes – como
os asiáticos, como a China –, com taxas de poupança maiores, conseguem
derrubar a taxa de juros de equilíbrio.
A Constituição de 1988, no artigo 192, prevê que o sistema financeiro
deve ser estruturado de modo a promover o desenvolvimento equilibrado do
país. Como estruturador do sistema financeiro, o que o Banco Central
pode fazer a respeito?
Desenvolvimento sem intermediação financeira é muito mais difícil. Se a
intermediação financeira está bem desenvolvida, ou seja, se os bancos
estão capitalizados, sem problemas de provisão, de liquidez, isso
certamente ajuda o desenvolvimento do país. E falo não só dos bancos,
mas também de todos os entes que regulamos aqui no Banco Central.
Os recentes resultados financeiros dos bancos e demais setores da
economia mostram os bancos com lucros altos e a economia em recessão.
Isso não indicaria um desequilíbrio?
Temos hoje um sistema, cujo lucro, com a recessão, caiu bastante. Os
lucros bancários acabaram caindo nos últimos tempos, porque os bancos
tiveram de fazer provisão. Houve eventos econômicos e não econômicos,
que levaram ao aumento da provisão e à redução da rentabilidade. Eu
diria que o setor está em linha com o resto da economia.
O setor industrial, que precisa de créditos para tocar seus negócios,
reclama muito da elevadíssima taxa de juros. O senhor acredita que a
única maneira de se controlar a inflação é por meio da taxa Selic?
Hoje, o instrumento clássico dos bancos centrais no mundo é a taxa de
juros. Quando se perde a capacidade de usar o instrumento, é o caso da
taxa negativa, começase a utilizar a expansão quantitativa. Mas até
chegar nesse nível, e estamos longe dessa situação, o normal é usar a
taxa de juros. É preciso ter sempre um objetivo e um instrumento. E hoje
nós temos a taxa de juros para controlar a inflação.
Ao longo do tempo, em função da poupança e por outras questões,
gostaríamos de ver a taxa de juros de equilíbrio da economia menor do
que é hoje. Porém, para isso, temse de trabalhar reduzindo a inflação,
como também em questões que façam os juros caírem. Outros instrumentos
pensados para controlar a inflação – todos, eu diria – já se mostraram
inferiores. Por exemplo, usar a taxa de câmbio. Isso não funciona.
Primeiro você controla, depois é obrigado a liberar o câmbio, e, quando
libera, a inflação volta. Também é o caso do congelamento de preços. São
controles que parecem fáceis, mas que acabam saindo com juros e correção
monetária. Há escolas do pensamento econômico que defendem o estímulo à
produção e a ampliação da oferta para a inflação cair.
Acredito que a forma de se pensar nisso é, de fato, aumentar a oferta. O
que faz um país crescer mais, com inflação baixa, é o aumento da
produtividade. Outra forma de dizer: “vamos produzir mais”. O problema é
que precisamos saber como dividimos as responsabilidades. O Banco
Central tem o papel de controlar a inflação e não existe mais nenhuma
outra instituição com essa atribuição. Quem defende o consumidor? Do
ponto de vista macro, é o BC.
Mas temos vários entes que nos ajudam a criar produtividade. O setor de
infraestrutura, por exemplo. As reformas também vão ajudar a criar
produtividade e aumentar a oferta. Mas se o Banco Central tiver de fazer
as duas coisas ao mesmo tempo – controlar a inflação e cuidar das
reformas que aumentam a oferta –, as coisas não vão funcionar.
Em países como a China e os Estados Unidos, por exemplo, a missão dos
bancos centrais é bem maior do que aquela que prevê a Constituição no
Brasil. Ela envolve questões como crescimento econômico e busca do pleno
emprego. O Sinal defende a ampliação da missão do BC brasileiro. O que o
senhor acha, é factível essa ampliação da missão para o nosso BC?
Aqui ela já acontece, acho que é apenas diferença de retórica. Quando se
olha o banco central americano, o FED, ele tem uma dupla missão. No
fundo, o que ele faz? Tem uma meta de inflação e cumpre a missão. Mas
não vai deixar de contribuir para o crescimento, nos termos como falei
anteriormente.
No caso do Brasil, se o Banco Central tivesse um duplo mandato, acho que
não ia mudar em nada sua forma de pensar. O Banco não ia deixar de
atingir a meta e de perceber que inflação e crescimento não são
substitutos, não são contraditórios. Para crescer, não precisamos gerar
mais inflação. Tem muita retórica em toda essa questão. O que estamos
fazendo, de fato, é criar condições para o crescimento por meio da
estabilidade, da inflação mais baixa. E isso vai continuar.
O setor produtivo depende muito dos bancos, que na Constituição
servem para promover crescimento econômico, gerar empregos. Só que, por
conta da taxa Selic muito elevada, eles se encontram numa zona de
conforto. Ou seja, continuam lucrando, mas não tendo de emprestar.
Porque, durante a crise, houve uma retração e o estoque de créditos dos
bancos privados ficou baixo (os empréstimos vinham dos bancos públicos).
Qual é o grau de responsabilidade do BC diante da posição dos bancos de
não emprestarem para o setor produtivo?
Tivemos, nos últimos dois, três anos, uma crise que tirou a confiança de
todo mundo em investir. Nossos investimentos – e aí me refiro não só aos
bancos, mas também às empresas, a todos os setores – caíram 25%. Uma
queda importante, que tem a ver com a desorganização, com a falta de
confiança. Tanto a oferta, quanto a demanda de crédito caíram.
E a forma de alavancar a vontade de se
investir de novo é olhar as nuvens negras que estão aí e tentar aliviar,
abrir um pouco o ambiente. Tenho a impressão de que nos últimos meses as
coisas ficaram mais claras. Estabilizamos a recessão e há esperança de
retomada. Começando a melhorar, vocês vão ver o sistema financeiro
emprestando mais.
O Sinal está acompanhando de perto
a tramitação do Novo Regime Fiscal, a famosa PEC 241, que agora está no
Senado como PEC 55. Pelo que sabemos, ela limita as despesas primárias
(fiscais, sociais, de investimento), mas não as despesas financeiras.
Essa situação pode interferir nas atividades do BC?
Em primeiro lugar, uma vez limitado o crescimento das despesas e,
portanto, o aumento da dívida, a taxa de juros estrutural da economia
fica menor. Não é limitando à força a taxa de juros e a capacidade de
trabalho do Banco Central que se avança. Se o governo nos dá uma meta,
não deve limitar o instrumento. Não se pode ter um teto para o
instrumento que é o mesmo que se usa para atingir a meta. Agora, nós
acreditamos que uma vez tendo um teto para as despesas, a dívida cresce
menos. E ela crescendo menos, há espaço para que os juros estruturais da
economia caiam.
Gostaria que o senhor explicasse um pouco para o leitor da Por Sinal
os conceitos de autonomia e independência do BC. Que tipo de autonomia o
senhor considera importante para o BC cumprir suas tarefas?
Acredito que o Banco Central ter autonomia de usar os instrumentos para
atingir os objetivos definidos pelo governo é o arranjo ideal. Ou seja,
ter liberdade de usar os instrumentos para atingir os objetivos não
determinados pelo próprio BC, mas pelo governo. Normalmente, usase a
palavra “independência” quando o Banco Central, ao mesmo tempo, define o
instrumento e o objetivo. Não é a nossa situação.
Hoje, o objetivo é determinado pelo Conselho Monetário Nacional,
organismo no qual há três ministros de Estado, sendo dois da área
fiscal. O governo define a meta e o BC, usando seu instrumento com
autonomia, deve atingir a meta definida. Assim entendo que deva ser. Já
é assim o comportamento institucional de fato. Mas, por alguma razão,
ainda não há uma lei sobre isso.
O senhor defende uma lei para a autonomia do BC?
Considero importante deixarmos de ser um dos poucos países que não tem
uma lei de autonomia para o Banco Central. Eu defendo uma lei, na
verdade, uma PEC, uma emenda constitucional. Nela deveria constar o
objetivo do governo e a liberdade do BC pra executálo. Nesse caso, não
seria só a inflação. Liberdade para fazer a política cambial, também,
assim como fazer a supervisão de forma autônoma, independente. Da mesma
maneira, pensando no supervisor, na sua proteção legal, para que possa
realizar seu trabalho sem se sentir ameaçado legalmente. E, finalmente,
essa lei teria de ser complementada com algum rearranjo orçamentário,
financeiro, para poder dar essa liberdade que o Banco Central precisa.
Essa discussão da PEC, da autonomia, é algo para 2017, 2018?
Acho que para 2017.
Sobre o organismo que define as metas, que é hoje o Conselho
Monetário Nacional, nós já tivemos um desenho em que outros setores da
sociedade, de fora do governo, participavam do Conselho. Como o senhor
vê a participação dos agentes econômicos nesse processo de definição das
metas?
Acho que no Conselho Monetário Nacional deveriam estar os entes que têm
a ver com as decisões do Conselho. No arranjo antigo, com a participação
de outros setores, as decisões eram muito menos efetivas. Agora, de
fato, temse um Conselho menor, no qual há uma divisão de trabalho. Há o
Ministério da Indústria e do Desenvolvimento, o Ministério de Relações
Exteriores, cada um tomando decisões que lhes dizem respeito. O arranjo
melhorou muito nos últimos anos e eu acho que é o adequado, hoje.
Em relação à autonomia do Banco Central, e ao mandato, a preocupação do
mercado é que o BC tenha tranquilidade para adotar suas políticas sem
interferências políticas. Mas falase muito pouco também de blindar o
Banco Central em relação ao lobby do mercado. O Banco Central está
blindado a pressões do mercado?
Sim, eu acho que o mandato serve para garantir a liberdade de trabalhar
sem pressões políticas ou de qualquer outra natureza ao longo do tempo.
E hoje em dia, mesmo sem o mandato, como eu falei, temos a autonomia de
fato. Hoje em dia, temos o presidente, os diretores, os servidores,
todos trabalhando de forma autônoma em relação a qualquer pressão de
fora. E temos também nossos instrumentos de controle, como o Comitê de
Ética.
O ministro Meirelles já veio do mercado, o senhor também. É,
portanto, natural que alguns possam pensar que diretores e ministros que
saíram do mercado para ocupar a cúpula do BC adotem políticas de
interesse do mercado. Existem mecanismos internos para evitar que isso
ocorra?
Os ministros de um governo –, não só ministros, mas diretores também –,
devem ser escolhidos por questões técnicas. Por seu conhecimento, pela
sua eficiência. Isso que é relevante. Precisamos, cada vez mais,
escolher técnicos, cuja capacidade é reconhecida, independente de onde
eles vêm. O importante não é de onde vêm, mas a sua capacidade técnica e
a sua capacidade de contribuir no cargo que vai ocupar.
O quadro do Banco Central hoje é de, aproximadamente, dois terços da
dotação legal. Metade do território nacional conta com uma representação
pequena do BC. Uma inclusão financeira passaria pela ampliação da
presença do Banco, com mais representações Brasil afora?
O Banco Central precisa ter o quadro necessário para atender ao sistema.
Nosso objetivo não é ocupar o Brasil, é fazer o melhor serviço possível.
Devemos colocar pessoas onde são necessárias. Se houver necessidade numa
determinada região, colocase lá. Nosso papel, como Banco Central, não é
distribuir nossas representações equitativamente pelas regiões. É ser
eficiente.
Após a crise de 2008, os bancos centrais no mundo todo reforçaram o
corpo funcional. No Brasil, o BC diminuiu. Fora isso, por conta da crise
que estamos vivendo, o governo já avisou que não vai ter mais concursos
durante um bom período. Nós estamos, realmente, necessitando de mais
quadros?
Está no Ministério do Planejamento nosso pedido para um concurso. Quando
cheguei, já estava lá. E tem meu suporte pleno. Vamos trabalhar para
esse concurso.
Hoje são tão poucos funcionários dedicados à supervisão bancária que
o Banco Central depende de auditorias contratadas pelos próprios bancos,
porque não tem gente para fiscalizar inloco. Não há um risco, para o
consumidor bancário, ou para o investidor, de um banco estar cometendo
irregularidades, fraudando, por conta dessa falta de fiscalização do BC?
Não, de maneira alguma. Eu vejo a fiscalização fazendo o seu trabalho,
vejo como os servidores têm se dedicado. Por isso, digo que o trabalho
da fiscalização não é falho. Ele está sendo bem administrado, bem
colocado. Sem prejuízo de, se acharmos necessário, ter mais
funcionários, pedir um concurso, como estamos fazendo agora, para
complementar.
Um dos temas que vamos discutir no nosso congresso é a autonomia
profissional do servidor do Banco Central, para que exerça plenamente
suas funções, para que possa emitir livremente seus pareceres. O senhor
acha essa questão importante e, de alguma forma, ainda falha na
instituição?
Vejo os servidores tendo a autonomia que considero correta, que é a
autonomia técnica. Nós precisamos de técnicos emitindo opiniões
técnicas, sobre assuntos que eles entendem. Isso não significa que não
deveríamos ter uma coordenação. Um banco central tem que ter um comando.
Portanto, são dois níveis diferentes. Uma visão dos especialistas, dos
servidores, de forma técnica. E uma coordenação, que cabe a nós,
diretores. Porque, se não houver coordenação, a voz do Banco Central vai
ser bem menor. Ninguém vai saber quem está falando, se é uma voz única
ou não.
Falando
agora num problema que é a escassez de troco. Pelo que sabemos, a lei dá
exclusividade à Casa da Moeda do Brasil para produzir a moeda. No
entanto, existe uma medida provisória autorizando a produção de moeda no
exterior. O Brasil já importa o disco de moeda. Fechou uma fábrica de
moedeiros, em Guarulhos. Na sua avaliação, essa produção no exterior
traz riscos para o país, riscos de falsificação, por exemplo?
Acredito que o Banco Central tenha um papel fundamental de ajudar na
questão do troco. O problema é como ajudar em momento de escassez. De um
lado, mobilizar mais recursos junto às autoridades fiscais, aumentar o
orçamento, colocar mais moedas. E estamos trabalhando nisso. Mas, por
outro lado, garantir que a oferta produzida no Brasil seja suficiente.
Uma vez que você tem dinheiro, dinheiro para fazer dinheiro, você tem
que ter a capacidade de produzir.
Em função disso, fomos obrigados a editar uma MP para que não falte
troco, na medida em que se não for produzido aqui e não vou entrar em
todas as razões que podem levar nosso único fornecedor a não ser capaz
de nos entregar o troco que a população precisa. Se a Casa da Moeda é
capaz de produzir, de ofertar, nós vamos comprar tudo dela. Hoje em dia,
há um esforço concentrado na Casa da Moeda. Eles estão trabalhando em
até três turnos e máquinas foram consertadas. De fato, há uma
preocupação conjunta do Banco Central e da Casa da Moeda em prol da
população brasileira.
Com relação à prevenção à lavagem de dinheiro, o processo de
repatriação que estamos vivendo, sem a declaração de origem dos recursos
e mediante simples recolhimento de tributos, não poderia prejudicar o
combate à lavagem de dinheiro?
Uma das questões relevantes sobre a lei de regularização, que fez parte
de muitas discussões até o final, é que ela não absolve crimes de
corrupção, de terrorismo, que não são anistiáveis. O que se anistiou foi
a questão tributária, numa linguagem mais simples, o caixa 2. Não todos
os outros crimes.
Por exemplo, na repatriação agora, os
bancos estão fazendo a prevenção, acompanhando tudo. Um dos nossos
desafios foi com o volume de pessoas regularizando seu dinheiro. Os
bancos tiveram de fazer a checagem de todo mundo. A Prevenção à Lavagem
de Dinheiro continua válida e às vezes é preciso um tempo hábil para a
checagem, que não deixou de ser feita e não deixou de ser recomendada.
Ainda sobre a repatriação. Se o Banco Central tem responsabilidade pelo
câmbio, como se formou esse montante de recursos de brasileiros no
exterior, sem que houvesse algum tipo de regulação do BC?
O órgão central da prevenção à lavagem é o Coaf. O Banco Central tem um
papel de auxiliar o Coaf dentro do sistema financeiro, recomendando aos
bancos determinados controles e supervisionando se eles, de fato, estão
fazendo isso.
Saiu publicado em uma coluna de jornal que, apesar da repatriação, o
Brasil tem R$ 1,27 trilhão não declarado no exterior. Como tanto
dinheiro, um volume absurdo, sai do Brasil e os órgãos de controle não
conseguem detectar? Qual é a responsabilidade do Banco Central?
Esses números que saem fazem as
manchetes, mas são difíceis de medir. Não é só o Brasil que tem essa lei
de regularização, são praticamente todos os países. Essa busca de
prevenção à corrupção, ao terrorismo, é internacional. Começou em 2001,
depois do 11de setembro. Ali começou a fechar o cerco. E hoje, em 2016,
15 anos depois, as portas estão quase completamente fechadas.
Quais são os mecanismos de controle que o senhor acha que o Banco
Central deve adotar a partir de agora?
Às vezes, são muitas fraudes, e isso é assunto de polícia. Mas existem
outras questões que não necessariamente têm a ver com o papel de
polícia. Hoje, a gente tenta evitar o sistema sombra, tenta evitar dar
espaço para isso.
Há pouco tempo, discutiuse uma lei, a do Super Simples, que acabou de
ser publicada agora. E o que o Banco Central fez? Foi à Presidência da
República e pediu para vetar um dos artigos, que permitia, por meio da
chamada empresa simples de crédito, que houvesse uma grande quantidade
de intermediários financeiros, que não estariam regulados, e que
poderiam estimular o sistema financeiro sombra. Esse é o nosso papel.
Não é o de polícia, de correr atrás de quem frauda. Nosso papel é
normatizar e tentar, de alguma forma, fechar o cerco.
A parceira do doleiro Alberto Youssef, Nelma Mitsue Penasso Kodama,
declarou que a corrupção no Brasil chegou às proporções do chamado
Petrolão por conta de deficiências dos órgãos de controle. Não há uma
comunicação entre o Banco Central e a Receita Federal sobre operações de
importação e exportação, por exemplo. A falta de comunicação não
permitiu que a corrupção chegasse a esse nível?
Não. O que permite chegar a esse nível é a falta de punição. As pessoas
cometerem ilícitos sem perceber que algo vai acontecer. A polícia não
vai evitar todos os roubos no país. Mas, se o roubo não for punido, ele
vai incentivar novos roubos. A pergunta que você está fazendo ao Banco
Central é a mesma que perguntar para a polícia por que existem roubos,
por que existem furtos. O que se pode fazer? Controles. Ninguém pode
ficar impune. A sociedade precisa ter uma forma de controlar isso. O que
incentiva a corrupção é a percepção de que não há consequências das
fraudes. À medida que resolvemos isso, avançamos.
E eu acho que o país está avançando nos últimos tempos. Um avanço que
custa, no curto prazo, mas que, no longo prazo, muda a percepção da
impunidade. Acho que é isso que está fazendo a diferença. É a questão de
que se alguém for pego, não é impune. E não o fato de se ter mais leis,
mais controle, um monte de gente sair fechando, cerceando a liberdade
das pessoas.
O Banco Central tem alguma política para estimular as cooperativas?
Elas seriam uma forma de dinheiro mais barato para o pequeno comércio. O
que é que o Banco Central pensa em fazer em relação a isso?
O cooperativismo é algo que vemos com bons olhos e que tem funcionado
nos últimos tempos. Estamos cada vez mais participando de ações de
cooperativa, vendo quais são as dificuldades e como podemos contribuir.
O cooperativismo é muito importante, faz parte do nosso trabalho.
QUEM PAGA A CONTA?
EM 2015, 200 AGÊNCIAS BANCÁRIAS FORAM DESATIVADAS,
PREJUDICANDO O CONSUMIDOR. BANCOS ALEGAM INSEGURANÇA COM A ONDA DE ASSALTOS,
CRISE ECONÔMICA E AVANÇO DOS SERVIÇOS DIGITAIS.
ELANE MACIEL
Os frequentes assaltos a agências bancárias e explosões de
caixas eletrônicos têm causado prejuízos incalculáveis à população e à
economia das pequenas cidades no interior do Brasil, onde se registra a
maioria dos casos. Os ladrões aproveitam a fragilidade na segurança pública
desses municípios, que contam com reduzido efetivo policial, para agir e
criar um clima de insegurança entre os moradores. Apenas no primeiro
semestre de 2016, foram registrados mais de mil ataques em todo o país.
Não bastasse o horror das ações, o saldo se torna ainda mais
negativo no caso das regiões que só possuem uma agência bancária, o que
obriga a população a se deslocar quilômetros até a cidade mais próxima para
efetuar uma simples transação bancária, como receber aposentadoria ou
benefício de programas sociais, sacar dinheiro ou pagar conta. Com medo de
assalto na volta para casa, as pessoas acabam fazendo as compras ali mesmo,
estimulando o comércio fora da sua região.
A situação vivida por esses consumidores bancários parece não
sensibilizar os bancos envolvidos. Depois de terem suas agências atacadas,
eles levam até quatro meses para reestruturar os locais atingidos, quando
não tomam uma atitude mais radical, fechando de vez suas agências. “Várias
agências estão sendo fechadas definitivamente, por causa do ‘novo cangaço’,
expressão usada para denominar esse tipo de crime, que cria clima de terror.
Muitas vezes, a agência é a única fonte de circulação de moeda do local”,
explica Gustavo Machado Tabatinga Junior, secretário de Políticas Sindicais
da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf).
Quando se trata de ataque ao Banco do Brasil, a situação piora ainda mais
para a população. “Em muitos municípios, o banco estatal faz o papel do
Banco Central, cuidando da custódia do dinheiro e distribuindo às outras
instituições financeiras. Se o Banco do Brasil for explodido, a cidade fica
sem recursos, é um drama.”
A tendência ao fechamento de agências bancárias no país, não
apenas por conta dos ataques do crime organizado, é uma realidade que parece
não ter volta. Com isso, o projeto de inclusão financeira, tão importante
para estimular o desenvolvimento e a qualidade de vida nas regiões mais
pobres, e tão caro ao Sinal, fica enormemente prejudicado. Dados do Banco
Central, divulgados pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em junho
passado, confirmam essa tendência. Em 2015, foram fechadas 200 agências, o
que deixou a rede bancária com 22.900 unidades, patamar de 2013. Os números
dizem respeito à atividade de 17 instituições financeiras responsáveis por
96% da rede física no Brasil.
A Federação credita essa redução à crise econômica que vive o
país desde 2014, às estratégias de gestão dos bancos e à opção dos clientes
de operar mais os canais digitais. Basta olhar o balanço do Itaú, referente
ao primeiro trimestre deste ano, para entender esse movimento. Em um ano,
março de 2015 a março de 2016, o banco fechou 154 agências físicas –
reduzindo 2.902 postos de trabalho – e abriu 74 agências digitais. “O Banco
Central tem de ter normas mais duras. Hoje, se o banco não tiver mais
interesse na agência, fecha e vai embora, sem se importar o que isso vai
ocasionar”, denuncia Gustavo Tabatinga, lembrando que muitas vezes o banco é
o único da cidade.
SEGURANÇA É LEI
Mesmo diante de situação tão dramática, o problema da falta de segurança é
tratado com descaso pelos bancos e autoridades locais, cada um empurrando a
responsabilidade para o outro. Pela lei federal 7.102/83, todos os
estabelecimentos bancários, incluindo agências e postos de atendimento, são
obrigados a submeter à Polícia Federal um plano de segurança para que possam
funcionar.
As instituições financeiras dizem que seguem à risca as determinações da
legislação e têm acompanhado os ataques a caixas eletrônicos e agências com
preocupação. Mas, para os bancários, o sistema de segurança é insuficiente e
funciona mal. Faltam investimentos por parte dos bancos, e os estados não
colocam efetivo maior de policiais para impedir esse tipo de crime. “Os
bancos pagam para ver, eles não querem assumir a segurança fazendo a parte
deles”, questiona o secretário da Contraf.
A Febraban, pelo seu lado, se defende alegando que o
investimento das entidades financeiras em segurança alcança R$ 9 bilhões
anuais, três vezes mais do que há uma década. “A maior parte desses recursos
vai para segurança digital, e não para as agências físicas. O investimento
dos bancos para que os crimes não ocorram está aquém do necessário”, rebate
Gustavo. Seja como for, os crimes cometidos nas agências bancárias e caixas
eletrônicos dizem respeito às políticas de Segurança Pública dos governos.
Para a Febraban, é preciso combater as causas, impedindo que os bandidos
tenham acesso fácil a explosivos, desbaratando as quadrilhas, lançando mão
de ações de inteligência. Enquanto isso, a Contraf trabalha junto às
Secretarias de Segurança
pública dos estados, discutindo medidas, e às Câmaras municipais,
apresentando minuta de projeto de lei para debate e aprovação. A ideia é
tentar unificar a política de segurança bancária nas cidades brasileiras. No
projeto, os estabelecimentos financeiros bancos oficiais ou privados, caixas
econômicas, sociedades de crédito, associações de poupança, agências, postos
de atendimento, entre outros – ficam obrigados a instalar dispositivos de
segurança em suas agências e postos de serviços situados no âmbito do
município, tais como porta eletrônica de segurança, detector de metais,
travamento e retorno automático, vidros resistentes ao impacto de projéteis
oriundos de arma de fogo, sistema de monitoração e gravação eletrônico de
imagem. Os vereadores de alguns municípios, como Recife, Fortaleza e Porto
Alegre, já aprovaram projeto de lei com base nas sugestões da Confederação
Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro.
O DRAMA VIVIDO EM TODO O BRASIL
Os exemplos de agências fechadas se multiplicam pelos estados
brasileiros. A população da região sul do Pará, como Tucuruí,
Parauapebas, Marabá e Eldorado dos Carajás, vive uma situação
bem complicada para realizar transações bancárias a partir das
explosões de agências e caixas eletrônicos. Depois do quarto
ataque, em menos de um ano, as agências do Banco da Amazônia e
do Banpará de Eldorado dos Carajás foram fechadas
definitivamente. Os moradores têm que se deslocar até Marabá
pela Rodovia Transamazônica, completamente abandonada, que fica
a 86 quilômetros e exige de quatro a cinco horas de viagem. Ou a
Parauapebas, a 67 quilômetros.
“Nem os apelos da população e do prefeito conseguiram demover o
banco estatal de abandonar o local”, conta Sandro Mattos,
diretor do Sindicato dos Bancários do Pará. Outro município que
passa pela agrura de não contar com uma agência bancária é Novo
Repartimento, no Pará, divisa com Tocantins, depois da ação dos
ladrões há mais de seis meses. O Banco do Brasil fechou para
reforma e não tem data para reabrir.
No Paraná, por exemplo, nos últimos dois anos, uma série de
agências e caixas eletrônicos foram destruídos em ações
violentas, principalmente nos municípios de Curiúva e Sapopema
cerca de 300 quilômetros da capital, Curitiba. Nesse período,
Curiúva sofreu cinco ataques envolvendo o Itaú, o Bradesco e o
Banco do Brasil. Este último levou mais de seis meses para
voltar a operar. Em Sapopema, depois de duas ações semelhantes,
o Itaú
decidiu fechar a agência. No mês de agosto, Sarapuí, em São
Paulo, ficou praticamente sem caixa eletrônico, após ataques. O
único que continuou funcionando foi o Banco do Brasil, mesmo
assim sem dinheiro. O posto do Bradesco e a agência do Santander
deixaram definitivamente a pequena cidade de 10 mil habitantes.
Juqueí, litoral norte de São Paulo, chegou a ter 11 caixas
eletrônicos, hoje não dispõe de nenhum. Em Pernambuco, o Banco
do Brasil de Macaparana, na Mata Norte do estado, se encontra
fechado há mais de três meses, depois de sofrer danos.
No Ceará, o cenário não é diferente: 17 agências continuavam
fechadas, em junho de 2016. Em São Luís do Curu, de 12 mil
habitantes, a 80 quilômetros da capital, Fortaleza, o BB, depois
de ser assaltado quatro vezes, decidiu deixar a cidade pela
falta de segurança. Os habitantes de Novo Oriente e de
Independência, no Sertão cearense, também estão sendo obrigados
a viajar para Crateús, a 50 quilômetros, para realizar
transações bancárias, depois dos assaltos ao Banco do Brasil.
O mesmo sacrifício é imposto aos moradores de Aracoiaba, também
no Ceará, que teve caixas eletrônicos explodidos – eles precisam
viajar 22 quilômetros até Baturité. Recentemente, Sandolândia,
município de 5 mil habitantes, a 450 quilômetros de Palmas,
capital de Tocantins, que não tem agência bancária, sofreu a
segunda explosão ao único caixa eletrônico (Bradesco) e não há
previsão de quando voltará a funcionar.
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EDUCAÇÃO E FINANCIAMENTO
ALDOMAR GUIMARÃES DOS SANTOS E NAILA GUIMARÃES DOS SANTOS
O financiamento da educação, principalmente a superior, tem relação direta
com a política de ajuste fiscal do Estado colocada em prática no Brasil,
especialmente, a partir dos anos 1990, ou seja, o ensino superior está
atrelado a mecanismos e entidades de financiamento que não se preocupam com
a essência do ensino, mas sim com o retorno do investimento.
Surge então um paradoxo: a educação é um fomentador do desenvolvimento, mas,
para isso, precisa gerar resultados capazes de financiar novas pesquisas e
impulsionar a maior inserção dos indivíduos e, com isso, atrair mais
investimentos.
Nenhum dos organismos financeiros internacionais, dos quais
saem nossos modelos de políticas públicas, têm como premissa a educação,
mesmo que esta tenha ligação umbilical com o desenvolvimento e este com a
capacidade de uma nação honrar seus compromissos financeiros e econômicos.
Os fundos utilizados para os dois instrumentos de fomento à
educação existentes no Brasil saem do Orçamento da União, o FIES se dá por
meio de desembolsos de recursos públicos e o ProUni por uma linha de
financiamento originária da renúncia fiscal.
Ambos os modelos demandam algum tipo de sacrifício da sociedade, mas os
resultados pífios apontados pelas entidades ligadas à educação, como o INEP
e a UNESCO, demandam uma reflexão sobre a política de financiamento da
educação superior pública brasileira e a sua relação com as metas de
expansão dos indexadores econômicos. A principal fonte, o FIES, sofreu queda
acentuada dos investimentos no ano de 2015, exatamente no momento de uma
grande crise econômica. Será que foi deixando de investir em educação que
nações como a Alemanha, Japão e Itália, derrotadas na Segunda Guerra
Mundial, se reergueram e hoje fazem parte do grupo das dez maiores potências
mundiais, econômica e politicamente?
Embora a resposta para esta questão seja NÃO – e ainda que
fosse SIM – em que momento nós cidadãos fomos consultados para saber se
queremos economizar com a educação?
O cerne da questão, portanto, parece ser a falta de participação da
sociedade nas políticas de Estado, deixandonos à mercê de políticas de
governo, que são cíclicas e vulneráveis a pressões de grupos de interesse.
Os Estados em todo mundo financiam a educação, pois a tratam como um
investimento e não como uma despesa. E isso faz toda a diferença, já que
investimento, diferente da mera despesa, não trará resultado imediato, pode
ser que os resultados levem anos, não sejam tão diretos e mensuráveis, mas
com certeza trarão ganhos e benefícios sociais.
Repensar a educação é, antes de tudo, repensar a forma de financiamento e
direcionamento dos recursos para esta área, portanto, deve ser uma decisão
de nação, de povo, suprapartidária, imune, e até mesmo blindada ante ao “mau
humor” de “mercados”, seja lá quem quer que sejam estas entidades.
Não é simples tomar decisões, mas quem disse que é fácil administrar? Não
existe manual e é possível que erremos em nossas escolhas, mas se todos
estiverem decidindo em conjunto, os erros serão mitigados e os acertos
potencializados. Investimento educacional, particularmente o financiamento,
não pode ser tratado como propriedade do Sistema Financeiro, devendo ser
escolha da sociedade. É a definição do futuro de um povo e deve ser tratado
desta forma.
(*) ALDOMAR GUIMARÃES DOS SANTOS é Especialista do Bacen, Contador e
Mestre em Controladoria, pela USP e Doutorando em Administração pela USCS.
(**) NAILA GUIMARÃES DOS SANTOS é Advogada e pósgraduanda em
Legislativo e Democracia no Brasil pela Escola do Parlamento da Câmara
Municipal de São Paulo.
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